Artigo | Contra a ‘Democracia das Chacinas’: 30 anos do caso Favela Nova Brasília

    Condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos devido a falhas na apuração da ação policial que resultou em 13 mortos na Favela Nova Brasília, no Rio de Janeiro, em 1994, até hoje Estado brasileiro não cumpriu recomendações

    No júri da chacina os inspetores Rubens de Souza Bretas e Ricardo Gonçalves Martins, os ex-policiais civis Paulo Roberto Wilson da Silva e Carlos Coelho Macedo e o ex-PM José Luiz Silva dos Santos foram acusados de homicídio qualificado | Foto: Felipe Cavalcanti/Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

    No dia 18 de outubro de 1994, agentes da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro executaram 13 pessoas, incluindo adolescentes, durante uma operação policial na Favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão. Na mesma incursão, três jovens, duas delas adolescentes, foram vítimas de atos de tortura sexual por parte de agentes policiais.

    Menos de um ano depois, no dia 8 de maio de 1995, em outra operação, mais 13 pessoas foram executadas pela polícia no local. 

    Diante da omissão e leniência do Estado em relação à investigação das violações em Nova Brasília, responsabilização dos autores e adoção de medidas de reparação, em 1996 o caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

    Leia também: Chacina de Nova Brasília: após 27 anos, absolvição de policiais ‘perpetua ciclo de violência’

    Após uma série de recomendações descumpridas pelo Brasil, especialmente em relação à realização de investigações completas, imparciais e eficazes, a CIDH encaminhou o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). A sentença condenatória foi prolatada pela Corte IDH em 16 de fevereiro de 2017, em um processo marcado pela coragem e mobilização de familiares das vítimas, sobreviventes da tortura sexual e organizações da sociedade civil.

    A sentença declarou a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela violação do direito às garantias judiciais de independência e imparcialidade da investigação, devida diligência e prazo razoável, do direito à proteção judicial, e do direito à integridade pessoal de familiares das pessoas assassinadas e das vítimas de tortura sexual pelo Estado. 

    Contexto estrutural

    A Corte IDH reconheceu que as duas chacinas se inserem no contexto estrutural de violência policial no Rio de Janeiro no período democrático, destacando que a letalidade da polícia atinge de forma predominante jovens, negros, pobres e desarmados. A dinâmica de violência de Estado é impulsionada pelo acumpliciamento de diversos órgãos de Estado – a polícia, o Ministério Público e o Judiciário –, que produzem uma política de segurança pública violenta e racista. 

    É a partir dessa dimensão estrutural, que a sentença internacional determinou uma série de medidas de não repetição, voltadas à transformação do modelo de segurança pública vigente, sustentado na violência bélica contra a população negra e periférica e seus territórios. 

    Após 30 anos da primeira chacina, o Caso segue em fase de supervisão de cumprimento de sentença e as vítimas, familiares e organizações representantes têm reafirmado à Corte IDH, em relatórios e audiências, que o Estado não cumpriu de forma minimamente satisfatória os pontos resolutivos da sentença. 

    Além de medidas de reparação individual para as vítimas e familiares, que ainda não foram completamente cumpridas, a sentença determinou a adoção de políticas públicas para garantir a não repetição de violências, com ênfase na redução da letalidade policial, na adoção de mecanismos normativos que garantam investigações sérias, eficazes e independentes em casos de violência policial, com destaque para a autonomia os órgãos de perícia técnica e de medidas que viabilizem a efetiva participação de vítimas e familiares em todas as etapas da investigação e processo.  

    Ocupação militarizada

    Segundo dados do próprio estado do Rio de Janeiro, de 2017, ano da publicação da sentença internacional, até 2023, 9.274 pessoas foram mortas por intervenção da polícia. O Rio segue apresentando uma política de segurança pública sustentada na violência bélica e na lógica de invasão e ocupação militarizada de territórios de favela – que produz uma série de violações a direitos fundamentais da população, como a inviolabilidade do lar, e interrompe com frequência serviços básicos como educação e saúde.

    É essa política que produz índices de letalidade policial alarmantes, incompatíveis com qualquer pretensão de consolidação de um Estado Democrático de Direito. 

    O tema da redução da letalidade policial articula o Caso Favela Nova Brasília com a Ação de Descumprimento de Preceitos Fundamentais 635, a ADPF das Favelas, em fase final de tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF). A mobilização desses dois instrumentos judiciais por movimentos sociais e pela sociedade civil organizada produziu, em alguns momentos, freios na escalada da letalidade policial no Estado. 

    O quadro geral, contudo, é de descumprimento das medidas da Corte IDH e do STF, já que o Estado do Rio de Janeiro ainda não apresentou um efetivo Plano de Redução da Letalidade Policial, construído com participação popular, que reconheça dimensão estrutural do racismo na política de segurança pública vigente e estabeleça uma meta concreta de redução anual de 70% das mortes provocadas pela atuação do Estado.

    Esses termos foram consolidados pelo Grupo de Trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que contou com a participação de ativistas, atores do sistema de justiça e pesquisadores, e apresentou relatório ao STF para auxiliar no julgamento da ADPF-635. 

    A responsabilidade pela política de segurança pública letal e violenta é compartilhada por diversas instituições do Estado, sendo fundamental o papel de controle externo que deve ser exercido pelo Ministério Público por determinação constitucional. Contudo, apesar de algumas iniciativas, ainda não há normativa nem prática que garanta a sua atuação para preservar a autonomia e a independência em investigações de crimes cometidos por agentes policiais – ou a participação das vítimas e familiares. 

    Política de morte

    O modelo de segurança pública vigente sustenta uma política de morte, tortura e violação de direitos, o que caracteriza o Brasil como uma democracia das chacinas, como cunhou de forma precisa o movimento de familiares de vítimas de violência de Estado.

    A aproximação do julgamento da ADPF das Favelas coincide com os 30 anos de luta por justiça em Nova Brasília, e coloca no centro do debate público uma nova oportunidade histórica para uma modificação relevante desse modelo da segurança pública no Rio de Janeiro e no Brasil.

    Isso é condição elementar para que possamos, de fato, imaginar e forjar a democratização da sociedade brasileira.  

    Nesse marco de 30 anos de luta por justiça, reafirmamos que a sentença do Caso Favela Nova Brasília é um instrumento de luta coletiva, que se soma ao repertório político construído pelos movimentos de familiares de vítimas de violência, diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, contra a violência de Estado e por mudanças estruturais no modelo de segurança pública vigente.


    Helena Rocha é codiretora do Programa para o Brasil e o Cone Sul do Centro Pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL).
    Lucas Matos é coordenador da área de Direitos e Sistema de Justiça do Instituto de Estudos da Religião (ISER)
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