Artigo | De Patricia Collins para Marielle Franco

    Leia trecho inĆ©dito do novo livro da ensaĆ­sta norte-americana Patricia Hill Collins sobre a vereadora carioca cuja morte, afirma Collins, “refletiu uma reviravolta nas instituiƧƵes democrĆ”ticas federais do Brasil”

    “Ɖ significativo que ela [Marielle] vinculasse essas expressƵes de violĆŖncia Ć s desigualdades sociais de raƧa, gĆŖnero, sexualidade e classe na polĆ­tica brasileira’, escreve Collins | Foto: Artur Renzo / Editora Boitempo

    Intersecções letais: raça, gênero e violência (2024) é o nome do novo livro da ensaísta norte-americana Patricia Hill Collins que a editora Boitempo, parceira da Ponte no Tamo Junto lança este mês. A obra analisa casos reais de agressões contra grupos ou indivíduos específicos e cita ideias, ações e movimentos de resistência surgidos em vÔrios cantos do mundo como formas de combater o que se tornou um grande problema social. Collins aplica o conceito de interseccionalidade de maneira acessível em anÔlises sobre as origens e consequências da desigualdade e da injustiça em diversos contextos. A obra demonstra como a violência afeta de maneira distinta as pessoas de acordo com sua classe social, etnia, nacionalidade e sexualidade.

    Patricia Hill Collins Ć© professora emĆ©rita do departamento de sociologia da Universidade de Maryland e foi a primeira mulher negra a presidir a Associação Americana de Sociologia. Ɖ considerada, ao lado de Angela Davis e bell hooks, uma das mais influentes pesquisadoras do feminismo negro nos EUA, autora de obras comoĀ Interseccionalidade,Ā Bem mais que ideias,Ā Pensamento feminista negro e Do Black Power ao Hip-Hop: Racismo, nacionalismo e feminismo.

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    Leia abaixo um trecho inédito do livro, que fala da vereadora e ativista brasileira Marielle Franco, vítima-símbolo dessa violência de gênero e de raça:

    Em 2018, quando Marielle Franco se aproximou da tribuna para fazer seu discurso em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, nem todos os membros da CĆ¢mara de Vereadores do Rio de Janeiro quiseram ouvi-la. Como presidente da ComissĆ£o para a Defesa das Mulheres, Marielle havia defendido vigorosamente a temĆ”tica das mulheres nos debates legislativos desde sua eleição, dois anos antes. Ela manifestava preocupaƧƵes sobre os direitos humanos das mulheres e tambĆ©m das populaƧƵes empobrecidas, e em grande parte negras, que vivem nas favelas do Rio. Sendo a primeira mulher negra eleita para a CĆ¢mara Municipal, ela propĆ“s projetos de lei que representavam os interesses desses grupos – por exemplo, creches noturnas para crianƧas cujos pais tinham de trabalhar ou estudar durante a noite, uma campanha contra a violĆŖncia e o assĆ©dio Ć s mulheres, sobretudo nas escolas, e mais transparĆŖncia nos contratos feitos pela prefeitura. Ela estava especialmente preocupada com a potencial corrupção que atingia o sistema de transporte pĆŗblico, bem como com os contratos concedidos a empresas envolvidas na construção de estĆ”dios para a Copa do Mundo Fifa de 2014 e os Jogos OlĆ­mpicos de 2016.

    Quando Marielle Franco se levantou para discursar, muitos apoiadores e oponentes estavam presentes. Ela comeƧou reconhecendo a luta internacional das mulheres pelos direitos humanos:

    Este 8 de marƧo Ć© um marƧo histórico, um marƧo em que falamos de flores, lutas e resistĆŖncias, mas um marƧo que nĆ£o comeƧa agora e muito menos Ć© apenas um mĆŖs para pautar a centralidade da luta das mulheres. A luta por uma vida digna, a luta pelos direitos humanos, a luta pelo direito Ć  vida das mulheres precisa ser lembrada, e nĆ£o Ć© de hoje, Ć© de sĆ©culos […] quando, nas greves e manifestaƧƵes, […] mulheres com firmeza, lutaram pelos direitos trabalhistas¹.

    Ela tambĆ©m falou sobre as diversas expressƵes de violĆŖncia que afetaram as mulheres no Brasil. Mas, enquanto ela falava, alguĆ©m a interrompeu gritando ā€œViva Ustraā€ – Ustra, militar de alto escalĆ£o que torturou pessoas durante os 21 anos de ditadura no Brasil.

    Recusando-se a ser silenciada pela interrupção, Marielle continuou:Tem um senhor que estĆ” defendendo a ditadura e falando alguma coisa contrĆ”ria? Ɖ isso? Eu peƧo que a presidĆŖncia da casa, no caso de manifestaƧƵes que venham a atrapalhar minha fala, proceda como fazemos quando a galeria interrompe qualquer vereador. NĆ£o serei interrompida, nĆ£o aturo interrupção dos vereadores desta casa, nĆ£o aturarei de um cidadĆ£o que vem aqui e nĆ£o sabe ouvir a posição de uma mulher eleita presidente da ComissĆ£o da Mulher nesta casa!

    Leia tambƩm: Patricia Hill Collins, esperanƧa para tempos de guerra

    A multidĆ£o aplaudiu, e a presidente da CĆ¢mara Municipal [TĆ¢nia Bastos] interveio e pediu mais seguranƧa. Após agradecer a intervenção da moderadora, Marielle Franco respondeu apontando os esforƧos de longa data para silenciar e controlar as mulheres: ā€œNĆ£o serĆ” a Ćŗltima nem a primeira vez, mas o embate, para quem vem da favelaā€. Recusando-se a recuar, ela reiterou: ā€œMinha fala estava falando da violĆŖncia contra as mulheres […]. Nós somos violadas e violentadas hĆ” muito tempoā€.

    Apesar da interrupção, Marielle continuou falando, abordando diversas questƵes relacionadas Ć  violĆŖncia, incluindo a ocupação militar das favelas que ocorria na Ć©poca, os assassinatos nĆ£o resolvidos de lĆ©sbicas, o assĆ©dio nas ruas enfrentado pelas mulheres negras e como as armas de fogo nĆ£o eram a solução para a violĆŖncia. Ɖ significativo que ela vinculasse essas expressƵes de violĆŖncia Ć s desigualdades sociais de raƧa, gĆŖnero, sexualidade e classe na polĆ­tica brasileira. Ela continuou listando ā€œuma diversidade de lutas na pauta pela vida das mulheresā€, tais como a legalização do aborto, a luta por melhores maternidades e as questƵes enfrentadas pelas mulheres no empreendedorismo. Ela encerrou o discurso com um forte apelo Ć  ação: ā€œĆ€s mulheres que constroem esta história, que estĆ£o junto comigo. Vamos que vamos!ā€.

    Uma semana depois desse discurso inflamado, em 14 de março de 2018, assassinos profissionais alvejaram com balas o carro em que Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, estavam. Os atiradores fugiram. Marielle Franco tinha 38 anos. Os assassinos esperaram que ela saísse de uma reunião e, em dois carros, a seguiram por vÔrios quilÓmetros. Na manhã seguinte a sua morte, dezenas de milhares de pessoas aglomeraram-se nas ruas do Rio de Janeiro e de todo o Brasil expressando pesar e raiva pelo assassinato. A morte dela também provocou surpresa ao redor do mundo.

    Leia também: Marielle Franco mudou a forma de fazer política no Brasil, apontam parlamentares negras

    Esse caso permanece sem solução², e muitos veem sua morte como um assassinato político que visava a suprimir as ideias que ela representava. Assassinatos de líderes políticos carismÔticos com frequência ocorrem durante períodos de mudança social. Marielle Franco havia emergido como uma líder da base popular durante um período em que o Brasil continuava a lutar com seus legados históricos de colonialismo e escravismo e com a sua história política de ditadura.

    O assassinato de Marielle ocorreu no contexto histórico, social e político do Brasil como Estado-nação. Como sugere o documentÔrio Democracia em vertigem (2019), a luta do Brasil pela democracia tem um longo arco que atravessa uma história com escravismo, um período extenso de ditadura e uma jovem democracia florescente que continua a ser desafiada por tendências autoritÔrias.

    As lutas pela democracia participativa no Brasil ampliaram a participação política para incluir mulheres negras que hÔ muito eram excluídas. O envolvimento de Benedita da Silva, mulher afro-brasileira, no Partido dos Trabalhadores e o surgimento do movimento de mulheres negras no Brasil abriram caminhos para a participação política das mulheres negras³. Marielle fazia parte de uma constelação de movimentos sociais que visava a reformar as instituições sociais democrÔticas do Brasil.

    Os movimentos sociais que influenciaram sua política almejavam melhorar a vida de pessoas empobrecidas, negras e indígenas, de mulheres e pessoas LGBTQ, responsabilizando o governo. Ela apoiou políticas destinadas a melhorar os sistemas de saúde pública, expandir a educação pública, defender a floresta amazÓnica e proteger todos os cidadãos da violência.

    Leia mais: Artigo | JustiƧa por Marielle Ʃ resultado da luta das mulheres negras

    A pauta de direitos humanos dela era baseada nos desafios políticos, sociais e intelectuais específicos da implementação dessas ideias no país. Não é incomum que assassinatos de ativistas como Marielle ocorram durante períodos de reviravolta política e mudança social, quando tanto as ideias como a política que elas geram estão em fluxo. O ano de sua morte certamente refletiu uma reviravolta nas instituições democrÔticas federais do Brasil. Seis meses depois, um candidato que defende uma ideologia de extrema direita, Jair Bolsonaro, que tinha ligações diretas com a antiga ditadura militar, foi eleito presidente.

    Ao insistir em ser ouvida durante seu discurso pelo Dia da Mulher, Marielle Franco defendeu a democracia como veículo para os direitos humanos. As palavras dela apontaram para as muitas formas de violência interseccional cotidiana que ela e os cidadãos brasileiros enfrentaram ao defender sua democracia. Concentrando-se nas mulheres negras, população que tem sido especialmente prejudicada pela violência de rua nas favelas e pela violência dirigida a seus filhos e suas filhas, Marielle argumentou que a defesa dos direitos humanos das mulheres negras por meio da resistência à violência melhoraria a vida de muitas outras pessoas.

    Muitas mulheres negras são vítimas de violência, violência doméstica e assédio sexual em empregos como trabalhadoras domésticas. Elas vivem em comunidades onde a polícia faz vista grossa e oferece pouca proteção contra grupos que controlam as ruas. Por meio de suas ideias e ações, Franco contribuiu para uma comunidade de fala que apoiaria a plena humanidade de cada indivíduo no Brasil e também as instituições democrÔticas que seriam necessÔrias para defender e cumprir os direitos de todas as pessoas.

    Franco nĆ£o foi morta apenas por fazer aquele discurso na CĆ¢mara do Rio de Janeiro. No que diz respeito a pessoas como ela, situadas em intersecƧƵes letais de gĆŖnero, raƧa, sexualidade e classe, falar a verdade sobre suas ideias pode ser uma grande ameaƧa para quem estĆ” no poder. Viver visivelmente em um corpo honesto como uma mĆ£e lĆ©sbica negra e falar sobre isso pode gerar violĆŖncia interseccional – mas tambĆ©m ajudou Marielle a ganhar uma sensação de liberdade.

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    Como mulher negra em um país com elevados níveis de pobreza e onde mais de metade da população é negra, Franco sabia que ameaçava as ideias tradicionais de gênero, sexualidade, raça e classe. Mas foi visível e eloquente mesmo assim. Recusou-se a moderar suas opiniões, apesar de estar sob vigilância. Desafiar os efeitos da violência interseccional sobre homens e mulheres negros é uma coisa; desafiar o sistema de ideias que explica e legitima a violência interseccional sancionada pelo Estado é outra. Uma política do corpo honesto gera essas contradições entre risco e recompensa.

    Notas

    ¹ Quero agradecer Clarice Cardoso por chamar minha atenção para esse discurso e por traduzi-lo.

    ² Marielle Franco e Anderson Gomes foram assassinados em 14 de marƧo de 2018. Seis anos depois, em 24 de marƧo de 2024, o processo de investigação do crime foi encerrado pelo MinistĆ©rio da JustiƧa com a prisĆ£o de Domingos BrazĆ£o, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro; Chiquinho BrazĆ£o, deputado federal pelo Rio de Janeiro do partido UniĆ£o Brasil; e Rivaldo Barbosa, ex-chefe da PolĆ­cia Civil do Rio de Janeiro. Eles foram apontados nas investigaƧƵes como mandantes do crime. AlĆ©m deles, sĆ£o rĆ©us no caso: o ex-policial militar Ɖlcio Queiroz e o policial militar reformado Ronnie Lessa. Ambos sĆ£o apontados como executores do crime, Queiroz como o motorista do carro que perseguiu as vĆ­timas e Lessa como autor dos disparos. (N. T.)

    ³ Medea Benjamin e Maisa MendonƧa, Benedita da Silva: An Afro-Brazilian Woman’s Story of Politics and Love (Oakland, Institute for Food and Development Policy, Global Exchange, 1997) [ed. bras.: Benedita, Rio de Janeiro, Mauad, 1997]; Patricia Hill Collins e Sirma Bilge, Intersectionality (2. ed., Cambridge, Polity, 2020 [2016]), p. 25-31 [ed. bras.: Interseccionalidade, trad. Rane Souza, SĆ£o Paulo, Boitempo, 2021, p. 39-45].

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