Não foi a boa vontade do sistema de justiça que levou ao júri e à condenação os assassinos da vereadora carioca, mas a luta sobretudo de mulheres negras que não permitiu que o mundo político se esquecesse dela
“Marielle é um símbolo de luta pelas bandeiras que ela defendia: antirracista, LGBTQIA+, feminista e contra a violência policial. […] Não tem uma frase mais certa do que ‘Marielle presente‘. Mesmo morta ela continua. As bandeiras que ela defende, vou falar no presente, continuam pairando porque ela é um símbolo. Os assassinos não tinham ideia disso.”
A frase acima é da jornalista Vera Araújo, que acompanha o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Junto com o também jornalista Chico Otávio, ela lançou o livro Mataram Marielle: Como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca – fruto da extensa investigação que fizeram.
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A condenação dos assassinos Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, respectivamente a 78 e 59 anos de prisão, é fruto de uma pressão popular jamais vista em relação ao assassinato de uma mulher preta, política, ativista, LGBTQIAP+ e periférica.
Não foi a boa vontade do sistema de investigação criminal e de justiça que levou ao júri e ao resultado que acompanhamos essa semana. Foi a luta – sobretudo de mulheres negras, maioria da população deste país – que não deixou que a sociedade, as autoridades e o mundo político se esquecessem de Marielle.
Sem o envolvimento das famílias e das sementes de Marielle, que lideraram esta mobilização, dos movimentos sociais e das periferias, dos movimentos negros, dos movimentos de mulheres, das entidades nacionais e internacionais, de personalidades aqui e de fora, não veríamos nada disso acontecendo. O caso já teria sido arquivado, esquecido como a morte de centenas e milhares de pessoas pretas neste país genocida. Nem a imprensa hegemônica se mobilizaria. Sem a ocupação das ruas, das assembleias, das câmaras, da internet, o júri – formado apenas por homens brancos, diga-se – talvez tivesse absolvido os assassinos.
O julgamento que começou e terminou esta semana foi, sem sombra de dúvidas, o júri do século, pois a justiça se fez para uma mulher negra a partir de uma mobilização popular sem precedentes. Mas a condenação não encerra a luta. Há os mandantes do crime e toda uma estrutura de acobertamento do caso a ser investigada e julgada.
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Para além da resolução do caso, Marielle continua nas mulheres negras que lideraram o movimento de forma contundente, na população periférica, na população LGBTQIAP+, nas mães de vítimas da violência de Estado. Seu legado é a luta por mudanças estruturais para uma grande parcela da população que é desumanizada, invisibilizada e vulnerabilizada por estruturas coloniais, a verdadeira herança maldita deste país.
Marielle virou semente, germinou, tornou-se um campo de girassóis amarelos, campo que não será silenciado e não dará um passo atrás. Marielle fez história essa semana à revelia de seus assassinos, dos mandantes, da extrema-direita e de tudo de mais maligno que corrompe este país há séculos. E, no que depender dos movimentos de mulheres negras, seguirá registrando legados mil na história do país.
Marielle sempre presente!
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