‘Não teve troca de tiro’, diz advogado de adolescente baleado em ação da PM que matou criança de 4 anos

Sobrevivente de 15 anos relatou a defensor que policiais atiraram sem aviso quando estava em moto com Gregory Vasconcelos, 17, que também foi morto. Depois de cair, jovem segurou respiração por medo de morrer

Em sequência: Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, e Gregory Ribeiro Vasconcelos, 17, mortos em ação da PM em Santos, em 5 de novembro | Fotos: arquivo pessoal

Mais uma pessoa sustenta que apenas a Polícia Militar atirou na ação que matou Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, e Gregory Ribeiro Vasconcelos, 17, no Morro São Bento, em Santos, no litoral paulista, em 5 de novembro. À Ponte, a defesa do adolescente de 15 anos, que estava com Gregory numa moto e também foi alvejado, disse que não houve troca de tiros.

Segundo o advogado Renan Lima Lourenço Gomes, os jovens estavam dando voltas de moto pela comunidade e acabaram passando em frente a um local que seria conhecido como ponto de venda de drogas, mas que estava vazio no momento. “Quando eles viraram numa rua, deram de frente com o carro da polícia e, pelo o que ele me falou e se recorda, já foram alvejados. Ele viu o menino da frente [Gregory] caindo morto e ele [que estava na garupa] falou que só conseguiu ficar vivo porque segurou a respiração ao máximo para controlar a dor”, afirma. “Ele acordou no hospital, porque acabou desmaiando.”

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O defensor denuncia que o adolescente permaneceu algemado na Santa Casa, sob escolta policial, enquanto esteve internado. “Nesse momento, ele se encontra extremamente debilitado, está com uma ‘gaiola’ na coxa direita, não consegue andar. Ele foi algemado, preso dentro de um hospital, sob a custódia de policiais. Está bem assustado.”

O jovem foi liberado pelo juiz Evandro Renato Pereira, da Vara da Infância, Juventude e do Idoso de Santos, porque não representaria perigo diante do estado de saúde, e deve ter uma audiência agendada para janeiro para a apuração de suposto ato infracional.

Familiares de Gregory, que pediram para não terem nomes nem grau de parentesco identificados, disseram que o jovem estava na casa de uma amiga quando foi chamado pelo adolescente de 15 anos para dar uma volta de moto. Os dois estariam sem capacete, o que teria chamado a atenção da polícia.

Uma mulher de 24 anos que foi baleada de raspão no braço e a mãe de Ryan, a cozinheira escolar Beatriz da Silva Rosa, 29, também relataram que apenas a PM fez disparos naquele dia.

Ryan brincava na rua, junto a grupo de cerca de 15 crianças, em frente à casa de uma prima, quando ouviram tiros. “Eu olhei para baixo, eles já estavam mirando para cima dando muito tiro”, relembrou Beatriz durante um protesto organizado por parentes e amigos na noite desta terça-feira (12/11). “Pode ter tido uma perseguição, mas não teve troca de tiro”, enfatiza. As mães no local começaram a tentar abrigar as crianças na garagem da residência quando Beatriz percebeu o filho ferido. Os próprios parentes o socorreram até a Santa Casa.

A cozinheira disse que enquanto aguardava o atendimento do filho, dois policiais sem farda apareceram e pediram seu endereço. Nervosa, ela disse que afastou os policiais porque não tinha condições de conversar a respeito, já que o médico havia chegado dizendo que Ryan passaria por uma cirurgia devido ao estado grave. “Quando subi para UTI, eu vi meu filho entrando em parada cardíaca, o médico falou ‘sai, sai, mãe, que a gente vai fazer o possível para salvar ele’. Eu já caí no chão e comecei a chorar, foi quando eles deram [a notícia do] o óbito do meu filho”, contou.

‘Trataram Gregory que nem lixo’

Além do velório e do enterro de Ryan, que foram cercados por policiais, os parentes de Gregory denunciam que a polícia também não permitiu a realização de cortejo até o sepultamento no Cemitério da Areia Branca, à tarde, no mesmo dia e local em que ocorreu a cerimônia de despedida de Ryan.

As familiares relataram que se sentiram humilhadas já no dia em que descobriram a morte do menino. “Fui avisada que o Gregory tinha sido baleado, fui até o local e perguntei para o policial para onde tinham levado ele. O policial falou que tinha ido para a Santa Casa. Fui lá e ele não estava. Voltei até o local [dos disparos], outro policial me puxou de canto e disse que ele não estava lá mesmo e que era para ligar no 192 [número do Samu]. Foi aí que eu soube que ele tinha sido levado para a UPA Noroeste”, conta. “Era uma informação tão simples, não precisava disso”.

Quando chegou na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), o adolescente já estava sem vida. À Ponte, a Prefeitura de Santos, responsável pela unidade de saúde, disse que Gregory foi levado até lá pelo Samu, “mas não resistiu aos ferimentos e morreu”.

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A família afirma que passou por mais uma situação revoltante: não conseguiram realizar o velório devido às condições do corpo de Gregory. Segundo elas, o corpo do adolescente ficou mais de 24 horas sem refrigeração, o que acelerou o processo de decomposição. O estado do corpo — com perfurações de bala no tronco e no rosto, segundo a família — fez com que o velório tivesse que ser interrompido.

Parentes disseram que, no dia seguinte à morte, 6 de novembro, foram ao Instituto Médico Legal (IML) de Santos e foram informadas de que o corpo ainda não estava lá. Ela descobriu que o Hospital da Beneficência Portuguesa, que faz serviço funerário, era responsável pelo recolhimento do corpo.

“Eu liguei para a Beneficência Portuguesa perguntando por que o corpo do Gregory não estava no IML, não tinha passado por perícia ainda. Eles disseram que o IML não tinha autorizado”, afirma. “O corpo dele só foi chegar por volta de meio dia, uma hora [da tarde]. Fizeram a perícia e só liberaram para a gente umas oito horas da noite”, revolta-se.

De acordo com ela, um dos funcionários da funerária disse que as condições do corpo estavam péssimas para o velório e que um policial teria determinado que o caixão deveria ficar fechado. “Se eles não queriam que tivesse velório, conseguiram, porque o Gregory ficou todo desfigurado. Foram tiros na cabeça e nas costas. O que eu quero é justiça, porque trataram ele que nem lixo, com o corpo sem refrigeração, jogado”, lamenta a parente.

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Ela conta que não conhecia o adolescente de 15 anos e que Gregory era uma pessoa carinhosa, que gostava muito de jogar futebol e já disputou algumas partidas quando mais novo em um time local.

A familiar contesta a versão da polícia. “Se ele estava fazendo coisa errada, que fosse abordado, não a polícia vir atirar e executar porque, para mim, foi uma execução. Todo mundo que viu que não teve troca de tiro, que não tinha arma”, afirma. “Ele não era um marginal de alta periculosidade como a mídia está pintando.”

Tanto ela quanto a reportagem não encontrou fotografias de Gregory ostentando armas em redes sociais, como o coronel Emerson Massera, porta-voz da PM, mencionou em coletiva de imprensa na semana passada. “Se você caminhar pelas ruas da comunidade, você vai ver esse tipo de coisa. O Gregory tinha 17 anos, é uma idade que se tem curiosidade sobre as coisas e pode acontecer de ele querer ficar no meio dessa gente que posta essas coisas. Mas mesmo se ele tivesse feito esse tipo de postagem, não justifica ter sido executado”, lamenta.

PMs sem câmeras

O caso foi levado ao 5º DP de Santos por Jorge Luiz Tilly Filho — não está claro se ele participou da ocorrência. Ele disse que tomou conhecimento de que três viaturas da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) estavam pelas ruas do Morro São Bento quando se depararam com cerca de 10 pessoas, dos quais quatro estariam divididos em duas motocicletas.

Segundo ele, o grupo teria retornado a um “local conhecido como ponto de tráfico de drogas”, o que fez as equipes irem a pé onde os “criminosos” se esconderam. Ao chegarem, os policiais dizem ter sido recebidos a tiros e pediram reforço de uma viatura do 6º BPM/I, a qual teria gerado “um efeito surpresa” pois “sete ou oito” pessoas fugiram ao verem o veículo.

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Com a “surpresa”, teria ocorrido um “novo confronto”, no qual dois adolescentes foram baleados e o restante fugiu pela mata.

É informado no boletim de ocorrência que três motocicletas foram apreendidas, sendo uma furtada e outra sem identificação, além de uma pistola calibre 9mm e um revólver calibre 38, ambos de numeração raspada, além de dois rádios transmissores.

Sem perícia onde Ryan foi baleado

O boletim de ocorrência sobre a morte de Ryan foi anexado a este às 10h06 do dia seguinte — uma hora antes da coletiva de imprensa marcada pela SSP. É descrito que foi feita perícia em todo o perímetro da ocorrência, mas com relação à morte da criança ela não teria sido realizada pois não foi identificado o local exato e “naquele momento seria inviável a realização de qualquer exame”. Além disso, se fosse identificado projétil no corpo da criança, o que o coronel Emerson Massera havia confirmado, será pedido o confronto balístico para saber de qual arma partiu o tiro que matou Ryan.

Uma terceira edição feita no documento, já às 11h50 — ou seja, depois da coletiva de imprensa da SSP —, informa que “a priori” não seria possível traçar “eventual correlação” entre os dois casos pela impossibilidade de perícia e que caberia à investigação elucidar.

O delegado Jorge Alvaro Gonçalves Cruz indicou que foram apreendidas as seguintes armas dos policiais: um fuzil calibre 556, relacionado a Alex Ferreira Alvino; uma espingarda calibre 12, relacionada a Clovis Damasceno de Carvalho Junior; e três pistolas .40 de Renan dos Anjos Anacleto, Mauro Gomes de Moraes Junior e Atila Araujo Valverde Delgado. No registro consta como vítima o policial Michel Rodrigues da Silva e como testemunha Marcelo Oliveira Silva.

Nenhum dos policiais usavam câmeras corporais. O 6º BPM/I não foi contemplado pelo programa.

Presentes soltaram balões e palavras de ordem enquanto caixão de Ryan era lacrado em túmulo | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

Sete PMs foram afastados

Na coletiva de imprensa de quarta-feira (6/11), o porta-voz da PM, coronel Emerson Massera, admitiu que o projétil que atingiu Ryan “provavelmente” partiu da própria polícia e que sete foram afastados das atividades nas ruas.

Ele considerou um “desfecho trágico”, mas gastou a maior parte do tempo em defender os policiais envolvidos antes de qualquer investigação. “Nós não estamos considerando esses policiais culpados. Os policiais são vítimas. Eles foram atacados, foram agredidos, protegeram a vida, efetuaram disparos para proteger a própria vida e, com certeza, podem ter certeza absoluta, que os policiais que participaram disso estão muito afetados, atingidos e comovidos pelo resultado que não era nunca o desejado”, declarou.

Depois, sustentou que Gregory “morreu em confronto com a polícia”, antes da apuração, e que ele “ostentava armas nas redes sociais”. O coronel ainda defendeu a redução da maioridade penal, embora não seja da competência do governo estadual legislar sobre o assunto: “Uma questão que a gente precisa retomar urgentemente é a discussão sobre a maioridade penal. É fato que o crime organizado, facções criminosas, o tráfico, utiliza a mão de obra de adolescentes no crime, e isso é algo que a sociedade precisa discutir.”

O secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, chamou de “vitimismo barato” o questionamento da deputada Paula Nunes (PSOL) sobre o caso durante audiência na mesma semana. “Lamento que uma deputada estadual faça um vitimismo barato na Assembleia Legislativa, usando a morte de um menino de 4 anos para fazer politicagem. Não vou falar sobre a ocorrência, quem tem que falar sobre a ocorrência é o inquérito da Polícia Militar que foi instaurado”, disse o secretário.

Ouvidor critica ‘polícia em velório’

A ação da polícia e a posição do poder público no episódio foram repudiados por outras 12 entidades de direitos humanos, que organizaram uma comitiva junto à Ouvidoria das Polícias para acompanhar o velório e o enterro de Ryan. “O governador e principalmente o secretário de segurança pública não respeita as famílias e a a gente vê isso por causa da posição dos próprios policiais: eles agem como eles tivessem a cobertura. Eles não estão nem aí, como diz a fala do governador”, criticou Debora Maria da Silva, fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, em alusão à fala do governador Tarcísio de Freitas, que menosprezou as denúncias de violência policial em março ao dizer que “o pessoal pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta que eu não tô nem aí”.

Na ocasião, o ouvidor Claudio Silva também discutiu com um sargento que estava com a câmera corporal dentro do bolso do colete, como a Ponte mostrou. Ele também havia criticado a presença da polícia durante o cortejo e fora do cemitério enquanto Ryan era sepultado.

“É um absurdo o que estão fazendo no estado de São Paulo. Virou política governamental colocar a polícia em velório de gente que morre pelas mãos da polícia, intimidar as pessoas”, declarou. “É vergonhoso, o cúmulo da falta de respeito aos direitos fundamentais das pessoas. Nesse estado aqui não vai poder mais ter ato fúnebre?”, contestou.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sobre o recolhimento do corpo de Gregory, os relatos dos familiares sobre o cortejo ter sido impedido e a situação dos policiais gravados pela reportagem fora do cemitério. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte resposta:

O caso é rigorosamente investigado pela Deic de Santos e pela Polícia Militar, por meio de Inquérito Policial Militar. Os agentes envolvidos na ocorrência estão afastados da atividade operacional e os laudos periciais estão em elaboração para auxiliar a autoridade policial no total esclarecimento dos fatos.

O adolescente baleado e morto durante a ação teve o corpo devidamente necropsiado e liberado aos familiares no dia seguinte aos fatos, sendo importante ressaltar que a recolha de cadáveres fora da capital não é realizada pelo IML, mas sim pelas funerárias locais. Quanto aos fatos referente ao velório, as denúncias são minuciosamente analisadas pela PM, que intensificou o patrulhamento preventivo na região após o ocorrido.

A Instituição reforça, mais uma vez, que mantém sua Corregedoria à disposição para registrar e apurar denúncias contra a atuação dos seus agentes, reiterando o seu compromisso e respeito às leis, à transparência e à imparcialidade.

A reportagem voltou a questionar a assessoria sobre a afirmação do advogado do adolescente de 15 anos de que ele teria sido algemado no hospital durante a internação, mas não teve retorno.

Também buscamos o Hospital da Beneficência Portuguesa de Santos sobre o caso. O serviço funerário disse que encaminhou os questionamentos ao setor responsável, mas até a publicação também não houve retorno. Se chegarem, a reportagem será atualizada.

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