No CPP Butantan presas quase não têm banho de sol, faltam itens de higiene feminina e atendimento médico. “Fui tratada pior que bicho”, diz detenta
As presas no Centro de Progressão Penitenciária Butantan (CPP Butantan), no bairro do Butantã, zona oeste da capital paulista, têm vivido sob condições indignas devido à precariedade das instalações. Elas têm acesso restrito a banho de sol, faltam itens de higiene, além de atendimento médico, psicológico e jurídico. Sobram violações, agressões e humilhações. Essa é a situação descrita em um relatório do Núcleo Especializado em Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública do Estado.
Relatos semelhantes, denunciando graves violações dos direitos humanos, também foram descritos à Ponte por pessoas que já estiveram detidas ali, parentes das detentas e organizações que atuam diretamente com a população carcerária.
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Para a Defensoria, as presas na unidade cumprem pena em situação degradante. “O CPP do Butantan vive, sim, um estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário”, afirma o relatório publicado em 28 de outubro. O documento registra as impressões e informações coletadas na visita feita no dia 4 daquele mês.
Inaugurado em 1989 como unidade feminina, o CPP fechou para reforma em 2021. A reabertura, em junho deste ano, marcou uma mudança no perfil dos custodiados — que passaram a ser presos homens.
A nova configuração foi marcada por fugas e denúncias sobre a infraestrutura deficitária, e durou pouco. Em julho, em entrevista à Ponte, o policial penal Fábio Jabá, presidente do Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (Sifuspesp), chamou o local de “cadeia de papel”.
A unidade voltou a ser feminina em agosto. Presas que estavam na Penitenciária Feminina da Capital, no Carandiru, foram transferidas para o CPP Butantan. Para a Defensoria, muitas das custodiadas relatam que a PFC era melhor, pois lá tinham garantidos ao menos os direitos básicos, como banho de sol, trabalho e estudo.
Mais de uma semana sem pátio
O banho de sol não é constante na unidade. As custodiadas relataram à Defensoria terem passado mais de uma semana sem acesso ao pátio. Às vezes, a liberação só acontece após o almoço, quando o sol está quente. Outra reclamação é sobre a obrigação de usar calças, vestuário incômodo nos dias de calor.
“Tá muito pior que no fechado”, relataram presas à Defensoria. Embora o CPP permita o regime semi-aberto, nem todas as detentas têm emprego e podem passar o dia na unidade. Mesmo presos em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) — a condição mais rígida para o cumprimento de pena — têm assegurados a saída da cela por pelo menos duas horas diárias.
Aline Gonçalves, de 29 anos, passou quatro deles presa e, neste período, esteve em cinco unidades prisionais — Franco da Rocha, Santana, São Miguel, Carandiru e Butantan. Em relação à última, onde passou três meses, ela afirma terem sido “acima do normal” as violações que sofreu. “Lá fui tratada pior do que bicho”, conta.
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Ela relata que chegou a passar sete dias sem banho de sol. Segundo Aline, as presas somente eram liberadas para o pátio quando havia visita da Defensoria Pública. “Era raro, só quando vinha juiz, defensoria. Aí eles soltavam nós como se não estivesse acontecendo nada”, afirma.
A situação também foi descrita por presas do coletivo Por Nós. O grupo foi fundado em 2019 por mulheres sobreviventes do cárcere. Uma das atividades promovidas pelo coletivo é auxiliar as presas que deixam as unidades em saída temporária. São oferecidas roupas, alimentação, dinheiro para o deslocamento no período fora da cadeia e a escuta.
Segundo representantes do coletivo, as detentas também contam terem recebido tratamento violento dos funcionários, que inclui agressões físicas e verbais.
Gritos e xingamentos
O rigor do tratamento dado às presas foi alvo de denúncia da Defensoria. Qualquer coisa é motivo para punição: andar arrastando o chinelo, não usar camiseta na calça, ficar de braços cruzados para os funcionários ou não manter limpa as celas que ocupam.
As detentas contaram que são chamadas de “lixo”, “faveladas”, “animal”. Elas dizem que os agentes e a diretora da unidade, Rosangela Dos Santos Silva Souza, costuram gritar e xingar muito.
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Também é comum, contam, uma blitz da madrugada, onde funcionários vão às celas e praticam violência verbal, destroem pertences e levam itens como cobertores e pijamas fornecidos por familiares.
Reclamar é perigoso, já que ir para o castigo representa um risco de vida, contam as presas. Uma delas contou à Defensoria que ficou cinco dias sem água e comida quando foi levada ao local. Além disso, as custodiadas disseram “quem vai para o castigo não volta”, não sabendo se há transferência de unidade ou de ala.
A falta de itens de higiene também foi relatada. O kit distribuído pela unidade — que contém sabonete, um rolo de papel higiênico e oito absorventes — é considerado insuficiente para atender às necessidades básicas. Algumas internas contaram precisarem de panos ou camisetas como absolutos, já que a quantidade fornecida era pequena.
Sem banho quente
A unidade conta com dois prédios principais, denominados amarelo e azul. No primeiro ficam as presas com trabalho externo e no segundo quem realiza outra forma de trabalho ou não possui ocupação.
O relatório diz que, em ambos prédios, a maioria dos chuveiros elétricos não funcionava, o que deixava as presas sem acesso à água quente. Também foram verificados vazamentos em vasos sanitários e celas com pouca ventilação e janelas que não abrem muito.
As custodiadas contaram ainda que à noite água e energia elétrica são cortadas por alguns períodos, como forma de represália.
Na unidade, os tanques de roupas ficam na parte externa, no pátio, local acessado durante o banho de sol. Como as custodiadas não têm acesso diário ao espaço, muitas lavam a roupa no chão dos banheiros.
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Os defensores identificaram que as presas do 4º andar não tinham acesso à televisão, diferente das que estavam alocadas em outros setores. A situação, segundo a Defensoria, indicava algum tipo de retaliação.
Questionada pela Defensoria, a direção da unidade respondeu que nenhuma das presas ali tinha o aparelho. Contudo, a equipe de defensores encontrou um depósito com dezenas de televisões guardadas em cima de armários e com o nome de quem as havia comprado. A Defensoria, no entanto, não conseguiu conferir se algum dos equipamentos pertencia às presas do 4º andar.
Bebês sem pediatra ou banho de sol
A parte da unidade destinada às gestantes e puérperas é especialmente precária. Segundo a Defensoria, o espaço não apresenta condições estruturais e arquitetônicas previstas nas Diretrizes Básicas para a arquitetura penal do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O espaço tem quatro dos seus seis chuveiros queimados.
Conforme o relatório, as presas ali também não têm acesso diário ao banho de sol, o que, com crianças, torna a situação ainda mais grave. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda que crianças de até dois anos tenham que ser expostas ao sol logo nas primeiras semanas de vida. Pela lei, as crianças podem ficar com as mães na unidade até os seis meses.
A unidade não conta com pediatra e uma das custodiadas contou à Defensoria que exames solicitados para o filho nunca foram feitos. “Aqui não é apropriado nem para mãezinha, nem para grávida”, disse outra presa.
Sem dinheiro nas saídas temporárias
A última saída temporária, ocorrida entre 17 e 23 de setembro, foi marcada pelo drama de quem teve dificuldades em deixar a zona oeste da capital. Diferente da PFC, o CPP Butantan fica numa região mais afastada da cidade, longe do metrô, por exemplo.
Segundo representantes do Por Nós, a localização fez com que muitas famílias não fossem até o local acompanhar a saída, como é comum nesses momentos.
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O coletivo também verificou problemas na saída das presas, que não receberam dinheiro em espécie, mas sim cheques relacionados à conta pecúlio. Longe de bancos para poder sacar algum valor, muitas pessoas tiveram dificuldades para deixar as proximidades do CPP.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo (SAP/SP) questionando os pontos apresentados na reportagem. Em nota, a SAP respondeu que não foi notificada pela Defensoria sobre o relatório, mas negou as denúncias.
Leia nota na íntegra
A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) não foi oficialmente notificada pela Defensoria Pública sobre relatório de inspeção na referida unidade, mas adianta que as denúncias elencadas pela reportagem não procedem, sendo oferecido tratamento digno às custodiadas. A Pasta esclarece que, desde agosto, as mulheres que estavam presas na então Penitenciária Feminina da Capital foram encaminhadas para o Centro de Progressão Penitenciária Feminino do Butantan, que dispõe de ala materno infantil. Com isso, a unidade passou a custodiar homens, sendo então chamada de Penitenciária da Capital.
A SAP disponibiliza canais para recebimento de denúncias que podem ser feitas, em caso de desvios, à Ouvidoria e à Corregedoria da Pasta.