O calar e o falar como ferramentas políticas de um governo que considera a morte de uma criança negra “vitimismo barato” e só se manifesta quando um estudante de classe média é assassinado por uma PM descontrolada
Em 2015, o então 1º tenente da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) Guilherme Derrite disse: “Porque pro camarada trabalhar cinco anos na rua e não ter… três ocorrências, na minha opinião, é vergonhoso, né? Mas é a minha opinião, né?”.
Passados 9 anos desde essa declaração, Derrite hoje é o responsável pela segurança pública do Estado de São Paulo no governo de Tarcísio de Freitas, cujos índices de letalidade galopam para o alto e avante desde o primeiro mês da dupla no poder. De janeiro a setembro, foram 9 aumentos consecutivos das mortes causadas pela PM do Estado de São Paulo.
Leia mais: Artigo | PM de São Paulo precisa ser parada e Derrite demitido
Quem acompanha a Ponte há mais tempo sabe que especialistas ouvidos por nós em 2022, após a vitória da chapa de Tarcísio, já avisavam isso. “Quem mora nos centros urbanos pode esperar um aumento de operações midiáticas, mais repressão contra batalhas de rap na rua, contra bailes funk”, pontuou à época Acácio Augusto Sebastião Junior, professor de Relações Internacionais da Unifesp e coordenador do Laboratório de Análise em Segurança Internacional de Tecnologias de Monitoramento (LASInTec).
Passados alguns meses desde o fim da Operação Verão e muitos mais da Operação Escudo, essa semana noticiamos que a Justiça tornou réus dois policiais responsáveis por forjar e matar Allan de Morais, de 36 anos, em Santos.
O príncipe e o roupeiro
Para o governo Tarcísio, a morte foi celebrada, pois, supostamente, Allan seria o “príncipe do PCC”, com a imprensa afirmando categoricamente tal título sem piscar duas vezes. Segundo a esposa, porém, Allan trabalhava como auxiliar de roupeiro no Jabaquara Atlético Clube, e retornava para casa após um dia de trabalho quando foi assassinado pelos policiais.
Para o Ministério Público, que denunciou o caso à Justiça, “os acusados simularam um confronto realizando disparos depois de a vítima estar incapacitada, esconderam o suposto encontro da pistola, bem como colocaram, depois, uma cápsula deflagrada no interior do veículo, tudo com o objetivo de transparecer que o ofendido portava uma arma de fogo e que atirou contra eles”.
O silêncio por parte do governo é retumbante. Nem Tarcísio, nem Derrite se pronunciaram sobre essa denúncia. Ambos gostam de se pronunciar em defesa da polícia que comandam. Ao ser denunciado na ONU por abusos e violência policial no litoral santista ano passado, o governador afirmou que “o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”.
Leia mais: Vídeo: Família fica 13h sem paradeiro de entregador levado sangrando pela PM de SP
Derrite, ao ser cobrado pela morte do menino Ryan, de apenas 4 anos, disse que a deputada que fez o questionamento praticava “vitimismo barato”. E continuou: “Não vou falar sobre a ocorrência, quem tem que falar sobre a ocorrência é o inquérito da Polícia Militar que foi instaurado”. Seu chefe ainda o elogiou na época dizendo que ele “tem feito um trabalho revolucionário” e que era uma referência para o Brasil. Sobre a morte de Ryan, nenhum pio até agora de ambos.
O calar e o falar são ferramentas políticas. Esse silêncio contrasta com a nota de pesar de Tarcísio acerca da morte de Marco Aurélio, estudante de medicina (como toda a imprensa afirmou e reafirmou vezes sem fim) morto pela PM. “Eu lamento muito a morte do Marco Aurélio. Essa não é a conduta que a polícia do Estado de São Paulo deve ter com nenhum cidadão, sob nenhuma circunstância. A Polícia Militar é uma instituição de quase 200 anos, é a polícia mais preparada do país e está nas ruas para proteger. Abusos nunca vão ser tolerados e serão severamente punidos”. Nem parece o governador do “tô nem aí” pras mortes na periferia de Santos, não é mesmo?
Há corpos que merecem nota de pesar. Outros, merecem o escárnio, a desumanização, o esculacho até mesmo em velório, o questionamento da própria culpa por ter sido morto (“tem que ver o que a pessoa estava fazendo para ter sido morta”, uma alma sebosa haverá sempre de perguntar).
Leia mais: Justiça arquiva inquérito sobre jovem cegada na porta de casa pela GCM
Há mortes que não importam. Geralmente, elas não estão nos Jardins, na Vila Mariana ou em qualquer bairro considerado “bom” da sua cidade. Há mortes que são esperadas e desejadas. Corpos pobres não merecem notas de pesar.
A “previsão” que fizemos em 2022 sobre o que seria esse governo vem se realizando a cada dia, com uma polícia que só queria chefes assim para fazer o que quisesse nas periferias do estado. Quem morre aos montes, e ainda mais, são corpos jovens e pretos.
Com a aproximação do pleito presidencial de 2026 tenho minhas dúvidas se haverá um pé no freio de Tarcísio para parecer moderado. Afinal, voto a extrema direita tem, empresários também, o agro, os conservadores, os falsos cristãos. Toda gente que se diz a favor da vida — contanto que seja branca e more nos Jardins.
Este artigo foi publicado originalmente na newsletter semanal da Ponte: clique aqui para assinar e receber textos exclusivos, reportagens da semana e mais na sua caixa de e-mail