Só a palavra de um policial não serve para condenar pessoas, decide TJ-RJ

Mudança em súmula do tribunal se soma a jurisprudências do STJ e determina que o depoimento de agentes policiais fundamentem decisões apenas quando amparados por outras provas

Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) alterou uma orientação que permitia condenações com base apenas nos testemunhos de policiais. A mudança ocorreu na última semana após pedido da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. O texto agora determina que depoimentos dos agentes fundamentem decisões apenas quando aparados em outras provas.

Uma súmula é um texto que resume uma jurisprudência — que por sua vez é um entendimento majoritário de um tribunal sobre determinada questão jurídica. O TJ-RJ tem cerca de 300 súmulas que resumem os pontos fortes das decisões tomadas pelas câmaras do tribunal.

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A súmula 70, agora modificada, tinha sido aprovada em 2003 pelo Órgão Especial do TJ-RJ. O texto original dizia que “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”.

Com a mudança, aprovada no último dia 12, a redação passou a ser esta: “O fato de a prova oral se restringir a depoimento de autoridades policiais e seus agentes autoriza condenação quando coerente com as provas dos autos e devidamente fundamentada na sentença.”

Roberto Soares Garcia, presidente do conselho do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), explica que a súmula de tribunal regional não tem aplicação obrigatória, mas revela uma tendência de julgamento naquela corte. O IDDD atuou como amicus curiae — “amigo da corte”, figura que ajuda fornecendo informações — neste processo.

“Na prática, o que acontecia era que mais de 90% das decisões do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro invocavam a súmula para condenar os acusados”, diz Roberto.

O catador de recicláveis Rafael Braga, condenado em 2016 apenas pela palavra de policiais | Foto: Luiza Sansão/Ponte Jornalismo

A nova redação da súmula “quase que já nasce velha”, como diz Roberto em referência à postura adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em jurisprudências recentes. Os magistrados da corte, principalmente da sexta e quinta turmas, têm exigido uma nova abordagem na avaliação da prova, o standard probatório (padrões para se provar algo). 

“A tendência do STJ é, por exemplo, no mínimo equiparar o valor da palavra de policiais, de autoridades públicas, ao do testemunho comum”, diz. 

Sem motivos ‘para desconfiar’

Ao analisar acórdãos do TJ-RJ, conta o representante do IDDD, o que se percebia era ausência da observação da prova colhida. “A súmula 70 virava um substituto da fundamentação da decisão. É como se os juízes não precisassem mais analisar detidamente a prova colhida. Bastava invocar a súmula 70 para justificar a condenação. Tudo o que eles precisavam fazer era identificar a palavra dos policiais nos autos”, afirma ele.

Um estudo feito pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro e pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) evidencia a situação. Os pesquisadores analisaram 2.591 sentenças de tráfico proferidas entre agosto de 2014 e janeiro de 2016 na capital e na região metropolitana do Rio de Janeiro. Em 71% dos casos, os processos têm como testemunhas apenas os policiais que prenderam o acusado.

A condenação do catador de recicláveis, Rafael Braga, é outro exemplo. Rafael ganhou evidência ao ser o único condenado das manifestações de junho de 2013. Na ocasião, o catador carregava dois frascos lacrados de produtos de limpeza no Centro do Rio, quando foi enquadrado pela PM. Acusado de carregar materiais explosivos, ele foi condenado a cinco anos de prisão.

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Em 2016, quando respondia em liberdade à condenação anterior, Rafael foi preso por tráfico de drogas e associação ao tráfico. A prova para a condenação foi a palavra dos policiais, com base na súmula 70. Na sentença, o juiz Ricardo Coronha, da 39ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, afirmou que não havia motivo para desconfiar da palavra dos policiais.

“Nos depoimentos policiais acima mencionados, nada há que elida a veracidade das declarações feitas pelos agentes públicos que lograram prender o acusado em flagrante delito. Não há nos autos qualquer motivo para se olvidar da palavra dos policiais, eis que agentes devidamente investidos pelo Estado, cuja credibilidade de seus depoimentos é reconhecida pela doutrina e jurisprudência. Os testemunhos dos policiais acima referidos foram apresentados de forma coerente, neles inexistindo qualquer contradição de valor, já estando superada a alegação de que uma sentença condenatória não pode se basear neste tipo de prova”, escreveu o magistrado.

Rafael foi condenado inicialmente a 11 anos e três meses de prisão. Em 2018, o catador foi absolvido do crime de associação e a pena caiu para seis anos.

Mudança de paradigma

Em um processo, o depoimento é parte importante para entender o que aconteceu, diz Roberto. Contudo, ao dar prevalência para a palavra de determinado grupo, como neste caso aos policiais, corre-se o risco de distorção do que de fato ocorreu, explica. Para o presidente do conselho do IDDD, é necessário cuidar da qualidade da prova colhida no processo. “O que a súmula 70 fazia era dispensar a polícia de apurar o fato, bastando colher a palavra policial, que passava a ser absoluta, incontestável”, fala.

A alteração no texto da súmula é uma mudança de paradigma importante: mesmo que a orientação não seja de aplicação obrigatória, o representante do IDDD afirma que a tendência é de que o TJ-RJ mude de atitude.

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Com a mudança, Roberto avalia que condenações baseadas na súmula 70 podem ser revistas, apesar da resistência dos tribunais em aceitar que uma modificação da jurisprudência dê o direito de revisão de decisões que já transitaram em julgado — quando uma sentença se torna definitiva, não podendo mais haver recursos.

“Se o cidadão foi condenado sem nenhum tipo de prova estranha à palavra dos policiais e isso foi declarado no acórdão, acho que tem aí a possibilidade de revisão”, fala.

Outro avanço recente no âmbito da legislação criminal também chama atenção. É a lei 10.141 que foi sancionada pelo governador Claudio Castro (PL) em outubro. Ela determina que uma pessoa suspeita de um crime não pode ser presa se a única prova colhida for um reconhecimento fotográfico. A lei prevê que os pedidos de prisão feitos pelos delegados deverão ter “indícios de autoria e materialidade e não apenas com reconhecimento por fotos como suporte”.

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