Ricky Silva, de 24 anos, foi morto em julho de 2023 no interior paulista. Dois policiais militares admitiram ter atirado contra o jovem, que estaria armado. Mas a perícia não encontrou revólver junto ao corpo
Sandro Cardoso da Silva, de 50 anos, conta que ele e o filho Ricky Alexsandro Valdo Silva, 24, sempre trabalharam juntos como vendedores autônomos. Ricky é o mais velho de três filhos. “Ele era meu parceiro”, diz Sandro, emocionado.
Ricky morava em Bauru, no interior de São Paulo, há apenas cinco meses quando foi morto pelos policiais militares Raphael Lourenço Cavalcanti e Marcelo Cassiano da Silva Chamorro. A ação policial ocorreu em 12 de julho do ano passado. O cabo Marcelo atirou uma vez e o soldado Raphael, duas. Ambos dispararam com pistolas glock.40.
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Os PMs atuavam no 4º Batalhão da Polícia Militar de Bauru. Em outubro, outro jovem, Guilherme Alves Marques de Oliveira, com 18 anos recém-completados, foi morto na cidade por policiais do 13º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (BAEP). A mãe de Guilherme, a auxiliar de cozinha Nilceia Rodrigues teve o velório do filho invadido por PMs e foi agredida.
O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) chegou a ser acionado, mas a morte do jovem foi constatada ali mesmo, na Avenida Coronel Alves Seabra, no Jardim TV, às 21h50. Ricky foi atingido por três tiros — um deles acertou o coração. Os demais perfuraram seu abdômen e atingiram o antebraço esquerdo de raspão.
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O pai conta que Ricky esteve em sua casa no dia de sua morte. O jovem tinha alugado um lugar para morar sozinho há pouco tempo. Pai e filho se despediram por volta das 21h e ele deixou o local carregando uma cama. Andou por seis quilômetros com o móvel e chegou a iniciar a montagem.
Sandro acredita que o filho saiu da kitnet aquela noite para ir a um bar próximo. O estabelecimento funciona 24h, é um point dos jovens do bairro em busca de diversão. O pai afirma que a versão dos policiais é fantasiosa. “Meu filho nunca teve arma”, repete o vendedor várias vezes.
Abordagem policial
O boletim de ocorrência foi registrado na Delegacia Sec. de Bauru Plantão, pelo delegado Frederico José Simão. O documento descreve que Marcelo e Raphael patrulhavam pela Avenida Nações Norte quando viram Ricky caminhando a pé e sozinho no sentido oposto da avenida. Na versão dos PMs, o jovem mudou de direção ao ver a viatura.
Tal fato fez com que os policiais passassem a perseguir Ricky, andando até mesmo pela contramão. Ao alcançarem o jovem, Marcelo desceu da viatura e teria mandado que Ricky colocasse as mãos na cabeça, o que não teria sido atendido. No lugar disso, ainda na versão dos policiais, o jovem fez menção de atirar, motivando o revide.
A dupla não foi ferida. A arma atribuída ao jovem era um revólver calibre 32. Esse armamento e as pistolas dos policiais foram apreendidos. Ricky carregava cartões de banco, o cartão do SUS, o título de eleitor e alguns papéis no momento em que foi morto.
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A advogada criminalista Fernanda Peron, integrante da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, lembra que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem decisão recente que descarta como justificativa para uma abordagem policial o fato de um suspeito mudar de direção ao ver uma viatura.
O artigo 244 do Código de Processo Penal (CPP) diz que a busca pessoal “independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar”.
Ao julgar um habeas corpus em abril de 2023, a Sexta Turma do STJ entendeu que o artigo 244 não autoriza “buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata”.
No caso de Ricky, os policiais admitiram que a abordagem se baseou exclusivamente na mudança de trajeto ao avistar a viatura.
Peritos não encontraram revólver perto do corpo
Um exame residuográfico, feito nas mãos de Ricky, não detectou partículas de chumbo. O delegado dispensou esse procedimento nos policiais, já que os agentes confessaram terem atirado.
O laudo, no entanto, afirma que o resultado por si só não pode ser considerado prova técnica contundente, já que pode ser atribuído a limitações da natureza da metodologia química usada no exame.
A arma atribuída pelos policiais a Ricky estava com três munições no tambor. Ela foi recolhida pela Polícia Militar e não pela perícia que, quando chegou ao local, não encontrou o revólver perto do corpo. Uma foto da perícia mostra a arma dentro de uma viatura. Em depoimento, os policiais disseram ter desarmado o jovem que, mesmo ferido, ainda esboçava reação.
Apenas três estojos de cartucho foram encontrados pela perícia — todos eles de arma .40, a mesma usada pelos PMs. A perícia na arma atribuída pelos PMs a Ricky apontou que ela estava em mau estado de conservação. O revólver estava sem o dedal de liberação do tambor, sendo necessário usar outra peça para abrir o dispositivo.
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Os peritos apontaram que ela estava em condição de uso, mas não puderam dizer se ela tinha sido usada devido ao tempo entre o crime e a data da perícia — que superou oito dias, tempo necessário para a feitura desse tipo de exame.
Em 1 de julho deste ano, o promotor de justiça Djalma Marinho Cunha Filho, da 9ª Promotoria de Justiça de Bauru, pediu esclarecimentos à Polícia Civil sobre o caso. O pedido teve como base a paralisação do inquérito em novembro de 2023, data em que foi feita a última diligência sobre o caso.
O inquérito até hoje não foi concluído. Em nota, o delegado titular da 3ª Delegacia de Homicídios, Cledson Luz do Nascimento, informou que a investigação segue em curso porque “obviamente se fazem necessárias a juntada de todos os laudos, respostas de ofícios, depoimentos e conclusão do procedimento administrativo da PM”.
“Sem contar que existem outros procedimentos em trâmite pela 3ª Delegacia de Homicídios com a mesma importância e relevância envolvendo vítimas de homicídios decorrentes de intervenção e também praticados por civis”, concluiu na nota [veja íntegra do texto no final desta reportagem].
‘Acontece por a gente ser de periferia’
“A gente busca por justiça faz tempo e não consegue. Acontece isso por a gente ser de periferia, pessoas humildes, de classe média baixa”, desabafa Sandro. A mãe do jovem tem um tumor na cabeça. Desde que perdeu o filho, Maria das Graças Valdo, 47, passa os dias chorando. “Ela pede o menino de volta. Como eu vou devolver se ele está embaixo da terra?”, diz Sandro, aos prantos.
Desde a morte, Sandro passou a procurar por testemunhas, alguém que pudesse esclarecer que o filho foi assassinado. Até hoje, mais de um ano após o crime, ele não conseguiu localizar ninguém.
“Hoje eu não sei o que viver mais”, diz. Sandro tem depressão. “Estou sofrendo demais por esse episódio que aconteceu na minha vida e na vida dele”, completa.
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O pai sempre temeu que algo pudesse acontecer com o filho por ele ser um ex-presidiário. O vendedor tinha medo de que Ricky fosse “forjado”, preso por algo que não fez. Sandro lembra que pediu que ele ficasse em casa na data em que foi morto. “Quando saiu daqui, falou que ia para casa dormir”, conta.
“Ele era meu companheiro. Onde eu estava, ele ia junto. O que mais me dói é que ele não estava mexendo com nada. Estava apenas andando na avenida”, afirma.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP) solicitando entrevista com os policiais militares citados, com o delegado responsável pelo inquérito e com um porta-voz da instituição para repercutir o caso. Em nota, o delegado Cledson Luz do Nascimento, titular da delegacia onde o caso é apurado, disse que o inquérito não foi concluído porque ainda faltam documentos, ofícios e demais procedimentos. O texto foi encaminhado em 17 de dezembro.
Leia a íntegra da nota do delegado responsável pelo caso:
Preliminarmente informo que a resposta está sendo encaminhada na data de hoje considerando que este Delegado de Policia foi recentemente designado para a titularidade da 3ª Delegacia de Homicídios e gozava até a data de ontem de Licença Prêmio. Os autos do Inquérito Policial tramitam pela referida Delegacia para apuração das circunstâncias da intervenção com evento morte.
A arma que segundo os policiais era portada pela vítima foi apresentada para a perícia e estava sob a custódia dos militares, já que conforme a versão do BO o policial CBPM Cavalcanti desarmou o suspeito, pois esse ainda esboçava reação e possíveis sinais vitais, acionando apoio via rádio de outras viaturas e para socorro do indivíduo alvejado.
O Inquérito ainda não foi concluído porque obviamente se fazem necessárias a juntada de todos os laudos, respostas de Ofícios, depoimentos e conclusão do procedimento administrativo da PM, sem contar que existem outros procedimentos em trâmite pela 3ª Delegacia de Homicídios com a mesma importância e relevância envolvendo vítimas de Homicídios decorrentes de intervenção e também praticados por civis.