Reginaldo Júnior, o África Menor, foi baleado por policiais militares em Sorocaba ao fugir de abordagem quando fazia uma pichação. PMs envolvidos na ocorrência não utilizavam câmera corporal
Na noite em que foi morto a tiros pela Polícia Militar, Reginaldo Antônio Ferreira Júnior saiu da casa da sogra, em Sorocaba, no interior de São Paulo, apenas de bermuda e com uma camiseta sobre os ombros, relata sua família. Eram 22h de domingo (5/1).
Depois de tomar um banho, ele colocou nos bolsos a chave da residência da família da esposa, onde passavam alguns dias de descanso, o celular e a CNH. Também levou a chave do carro, apesar de ter saído de carona no veículo de um amigo, com quem foi às ruas buscar um point de pichação.
Tratado como Júnior em casa, por carregar o nome do pai, Reginaldo era o “África Menor” nas ruas, um experiente artista da cena de pichação e grafite, conhecido inclusive em São Paulo, onde mantinha velhos amigos. Ele vivia agora em Conselheiro Lafaeite, município do interior de Minas Gerais, mas frequentou a capital na época em que morou em São Roque, a cerca de 70 quilômetros.
Segundo os relatos ouvidos Ponte, o amigo que dirigia o carro em Sorocaba indicou um muro onde já havia feito um registro, agora apagado. Na vez de África pichar, uma viatura da PM surgiu no outro lado da via — e os dois decidiram fugir. O motorista tentou demover Reginaldo da ideia, mas ele insistiu, disse que não queria dar outra tristeza para a esposa: seis meses antes, Henrique, filho de 2 anos do casal, havia morrido em um acidente de trânsito, quando era levado ao médico por uma van da prefeitura.
Às 22h22, Reginaldo enviou seu último áudio para a esposa: “Ô, vida, eu estava no rolê com o moleque, e deu ruim aqui. Nóis tá dando fuga, vida”. Três minutos depois, a PM alcançou-os na Alameda do Horto.
Quando o motorista parou o carro, Reginaldo tentou correr em meio à área de mata urbana. O amigo foi jogado no chão e agredido pelos policiais. À família de Júnior, ele diz que apenas ouviu vários tiros. África Menor foi baleado na cabeça, pescoço, tórax, nádega e perna.
Família diz que arma foi forjada
Participaram da ocorrência os policiais Alessandro de Souza Ferreira, Gioliano Tomazini Viana e Rafael Cheles Gonçalves, além de Wesley Christian de Almeida, que dirigia a viatura. Os PMs não usavam câmeras corporais.
Reginaldo foi levado à UPH Zona Norte, a dez minutos dali, apenas às 23h50, já sem vida, registra um laudo médico. Antes do resgate, o amigo rendido diz que várias viaturas chegaram ao local. Os policiais insistiam para que confessasse em nome de ambos um suposto roubo que nunca cometeram.
Ele negava a todo o tempo e afirmava que haviam saído para pichar. No carro dele, os policiais encontraram uma lata de tinta vazia, uma garrafa pet com tinta, um corante, dois pincéis e um spray.
No boletim de ocorrência registrado na madrugada do dia 6, consta apenas o relato do policial que dirigia a viatura. Ele disse que, após parar o carro, os três colegas adentraram a mata para procurar Reginaldo, quando ouviu disparos. Afirmou ainda que tomou conhecimento depois de que o pichador foi morto.
Os policiais alegaram terem apreendido com Reginaldo uma pistola Taurus 380mm com numeração raspada. A arma tinha seis cartuchos intactos e um outro picotado, mantido nela após um disparo ter falhado. Eles afirmaram, portanto, que teriam reagido a um ataque iminente. A família afirma que a versão da PM é mentirosa.
“Sem sombra de dúvida isso foi forjado”, diz Cássia Ferreira, mãe de Júnior, que viajou com o marido do interior de Minas Gerais para Sorocaba ao saber da morte do filho.
“Ele não tinha uma arma. Como o meu filho ia viajar com três crianças pequenas no carro e uma arma? Ele veio de Conselheiro Lafaiete, viajou mais de 700 quilômetros, e ia se arriscar a ter uma arma no carro? Nunca, jamais, ele não tem arma. Disso aí, a gente tem plena convicção”, afirma a familiar, segundo a qual Júnior, que era também pintor, nunca se envolveu com atividades ilícitas.
Celular da vítima está desaparecido
A mãe contesta também a versão da PM de que os itens pessoais de Júnior foram subtraídos. A família ainda tenta reaver seu celular. Na última semana, o número atribuído a Reginaldo saiu de grupos de WhatsApp nos quais estava. A esposa da vítima também já não consegue acessar a conta dele no Instagram, uma vez que a senha foi aparentemente alterada.
Em nota à Ponte, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) limitou-se a afirmar que há inquéritos em tramitação da PM e da Polícia Civil.
Neste último caso, a investigação é conduzida pelo Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC) de Sorocaba. Foi solicitada perícia do local da morte e exames residuográficos dos envolvidos, para identificar vestígios de disparos.
Cássia conseguiu depôr sobre o sumiço dos itens do filho apenas na última quarta-feira (8/1). A esposa dele entregou novas provas na sexta (10/1). Até agora, a família não teve acompanhamento da Defensoria Pública ou de um advogado particular, já que não tem condições financeiras de arcar com isso. Quem se dispôs a ajudar até aqui, afirma a mãe, foram os amigos que África Menor cativou nas ruas.
“Quem está pagando tudo, os custos fúnebres e os nossos translados são os amigos, os outros artistas de rua, ditos pichadores. São os únicos que nos procuraram. Estão fazendo várias vaquinhas entre eles para ajudar a gente”, diz Cássia, que sepultou o filho em Sorocaba, pelos laços da família com a região.
Os amigos de rua já haviam mostrado lealdade na última terça (7/1), ocasião em que interditaram a Avenida General Carneiro na altura da Delegacia Seccional de Polícia de Sorocaba em protesto contra a morte dele. Na ocasião, levaram faixas com os dizeres “spray não atira”, contrapondo a versão da PM.
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Na quinta (9/1), amigos de São Paulo também protestaram: fizeram uma passeata no Centro. Na ocasião, como revelou a Ponte, cerca de 15 manifestantes e um fotojornalista que cobria o ato foram detidos pela PM, após uma outra pessoa não identificada jogar tinta vermelha na escadaria da sede da SSP-SP.
Reginaldo Júnior deixou, além da esposa e dos pais, outros quatros filhos. O mais novo deles é uma bebê de oito meses. “Eu estou sem palavras ainda para falar, porque até agora não caiu realmente a ficha. Vejo aqui cada um dos meus netos, e estou sem chão”, lamenta a avó das crianças.
O que diz a SSP
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) para ter informações sobre as circunstâncias da morte de Reginaldo Júnior. Leia a íntegra da nota da Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviada à reportagem:
A Polícia Militar apura todas as circunstâncias dos fatos por meio de um inquérito policial militar (IPM). A Polícia Civil também realiza diligências e a Delegacia de Homicídios da Divisão Especializada de Investigações Criminais (Deic) de Sorocaba instaurou um inquérito policial para investigar o caso.