Artigo | Constrangimento, vergonha e humilhação

    Considerada uma forma de “estupro institucionalizado”, a revista íntima vexatória — que será examinada pelo STF — é uma violência a familiares de presos já condenada pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)

    A unidade realizou revista íntima em todas as mulheres ali que se encontravam, alegando que o equipamento de scanner corporal estava quebrado. Todas as mulheres foram submetidas a uma revista que gera constrangimento, vergonha e humilhação, sendo que temos até determinações legais proibindo este tipo de abordagem. Mas, sabemos também que, infelizmente, pela falta de informação, as mulheres se submetem a essas práticas por medo de represálias para com os seus parentes privados de liberdade.

    O presente relato compõe apenas uma das inúmeras denúncias de que são encaminhadas diariamente à Pastoral Carcerária Nacional. São constantes as narrativas de mulheres que, ao tentarem exercer o seu direito à visita e ao contato com seus filhos, companheiros, pais e/ou irmão privados de liberdade, são submetidas à prática desumana da revista íntima vexatória — prática essa que, inclusive, já foi considerada uma forma de “estupro institucionalizado”.

    Leia mais: Revista vexatória é ‘estupro inconstitucional’ e deve ser proibida, defendem especialistas

    Essa modalidade de revista, diferentemente de uma mera busca pessoal, consiste em fazer com que visitantes de pessoas presas, especialmente mulheres e crianças, se desnudem para que policiais penais possam verificar, mediante o exame de suas partes íntimas, a possível existência de materiais ilícitos inseridos em cavidades corporais. Essas mulheres são instruídas a se agachar reiteradamente sobre um espelho, tossir e realizar determinados movimentos para expelir os objetos que supostamente estariam carregando. O tato de suas partes íntimas também costuma ocorrer.

    Recorte racial

    Não é novidade para ninguém que o sistema de justiça criminal brasileiro opera por mecanismos extremamente seletivos, resultando em uma população privada de liberdade composta, em sua maioria, por homens (94,5%), jovens (43,1%), negros (69,01%) e periféricos. Todavia, um dado que é constantemente invisibilizado refere-se ao perfil dos/das familiares dessas pessoas — familiares esses que são essenciais à manutenção da integridade física e da garantia de direitos da população carcerária brasileira.

    Marina Carli Lins, em sua dissertação de mestrado, aponta que ao menos 75,2% das visitantes cadastradas e aptas a realizar visita social no estado de São Paulo em 2018 eram mulheres, e que 85,5% das visitas sociais realizadas no estado de São Paulo, entre 2011 e 2018, foram realizadas por mulheres.

    Leia mais: Procuradoria Federal pede fim da revista vexatória em todos os presídios do país

    No que tange ao perfilamento de raça e classe dessas mulheres, a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo afirma não produzir e/ou armazenar essas informações — afinal, não haveria interesse por parte do órgão fiscalizatório em assumir que tamanhas violações são direcionadas a um perfil específico de visitantes. Todavia, um levantamento realizado em 2021 pela Rede de Justiça Criminal, Pastoral Carcerária, Agenda Nacional pelo Desencarceramento e uma série de outras organizações da sociedade civil, que contou com a participação de 471 familiares de pessoas presas em todo o território nacional, indica que: “68,1% se autodeclaram negras — sendo destas 54,3% pardas e 13,8% pretas — e 28% brancas. Em porcentagem muito menor, estão aquelas que se consideram amarelas (1,8%) e indígenas (0,4%)”.

    Em que pese o princípio da intranscendência punitiva, previsto no artigo 5º, inciso XLV da Constituição Federal, assegure que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”, há uma seletividade do sistema de justiça criminal que opera, inclusive, na punição de familiares de pessoas presas. Essa seletividade impõe a corpos de mulheres negras, economicamente vulneráveis e responsáveis pela integridade física de seus parentes encarcerados, uma série de torturas e violações de direitos — sendo a revista íntima vexatória uma de suas expressões mais violentas.

    ‘Trato cruel’

    Na última quinta-feira, dia 6 de fevereiro de 2024, a discussão acerca da legalidade de provas obtidas mediante submissão à revista íntima vexatória foi retomada no Supremo Tribunal Federal, em sede do julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 959.620, com repercussão geral (Tema 998). Com o pedido de vista que levou o julgamento à plenária presencial, o cenário de seis votos a favor da ilegalidade de provas (logo, contra a revista íntima vexatória) fica ameaçado, podendo ser revertido a qualquer momento.

    Com uma série de colocações controversas, que vão desde a confusão entre busca pessoal e revista vexatória, até à possibilidade de suspensão arbitrária das visitas, o encerramento de sessão trouxe consigo uma sensação de desconhecimento da realidade do cárcere por parte da suprema corte brasileira.

    Leia mais: A rotina das revistas vexatórias na Fundação Casa

    Diante de seu caráter incompatível com a dignidade humana — que fere a intimidade, a saúde e a integridade física das mulheres submetidas —, a revista íntima vexatória foi considerada “trato cruel” pela Organização das Nações Unidas. Ademais, os casos envolvendo a prática da revista íntima vexatória foram levados, desde a década de 1990, ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), que se posicionou desfavoravelmente à prática em ao menos três casos concretos: caso XY v Argentina, apreciado em 2006; caso Miguel Castro Castro v Peru, de 2006; e na medida provisória do caso Complexo Penitenciário Curado v Brasil, de 2014.

    O caso XY v Argentina, talvez o mais representativo entre os três, tratou da submissão da Sra. X e de sua filha Y a “revistas vaginais”, ocorridas quando visitavam seu marido/pai no Serviço Penitenciário Federal da Argentina. O presente caso levantou as problemáticas da revista íntima vexatória aplicada a crianças, visto que Y sofreu danos psicológicos severos por ser submetida a inspeções de suas cavidades corporais desde os 13 anos de idade. No mais, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) considerou que a revista íntima vexatória violava o direito à proteção da honra e dignidade, previstos no artigo 11 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

    Prática que coíbe visitas

    Ao entendermos que o objeto da discussão no Supremo é, precisamente, a inspeção de cavidades corporais de mulheres e crianças, torna-se difícil conceber que a sua prática possa ser considerada legal. Ora, essas mulheres são severamente violentadas pelo simples fato de quererem visitar seus familiares privados de liberdade — sendo que a visita social é um direito tutelado pela Constituição Federal, pela Lei de Execução Penal e pelas Regras de Mandela.

    Leia mais: Policial penal confunde pente com arma e mata jovem dentro de presídio

    No mais, o relatório “Vozes e Dados da Tortura em tempos de encarcerameto em massa”, publicado em 2024 pela Pastoral Carcerária Nacional, expressa o protagonismo das familiares na denúncia de torturas do sistema prisional, à medida que mais da metade (50,62%) dos casos computados foram encaminhados, precisamente, por esse grupo. Dessa forma, a revista íntima vexatória cria um ambiente em que familiares de pessoas presas sentem-se coibidas a visitar espaços de privação de liberdade — consequentemente afastando do cárcere as principais denunciantes das torturas que nele ocorrem.

    A Pastoral Carcerária Nacional, enquanto organização da sociedade civil que, há mais de 50 anos, atua na denúncia da tortura no sistema prisional brasileiro e pela garantia de direitos mínimos às pessoas presas e a suas familiares, urge pela declaração da ilegalidade de provas obtidas pela prática de revista íntima vexatória.

    Isadora Meier Kain é advogada e assistente jurídica da Pastoral Carcerária Nacional.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    Inscrever-se
    Notifique me de
    0 Comentários
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários

    mais lidas

    0
    Deixe seu comentáriox
    Sobre a sua privacidade

    Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.