Entregador preso a caminho do trabalho é solto após passar cinco meses num centro de detenção

Kayo Reis, de 19 anos, foi libertado em janeiro. O entregador virou réu por roubo e extorsão ao ser apontado como suspeito apenas por causa da roupa que usava. O jovem também foi submetido a um reconhecimento irregular na delegacia

Kayo Reis, de 19 anos, passou cinco meses no Centro de Detenção Provisória I de Guarulhos por um roubo e extorsão que nega ter cometido | Foto: Arquivo pessoal

O aniversário de 19 anos de Kayo de Jesus Santos Reis ocorreu dentro do Centro de Detenção Provisória I de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. Não teve bolo, festa ou qualquer alegria. O entregador só tentava entender por que continuava preso por um crime que não cometeu. Ao todo, foram cinco meses de angústia encarcerado. Em 30 de janeiro deste ano, Kayo enfim foi libertado após a Justiça entender que faltavam provas para prendê-lo.

No momento em que foi preso, Kayo estava indo trabalhar. “Foram cinco meses perdidos na minha vida. Eu já poderia ter conquistado minha habilitação, minhas coisas, mas fiquei parado por uma injustiça”, desabafa o entregador. 

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Kayo responde judicialmente pelo crime de roubo que, no Código Penal, é contemplado pelo artigo 157. A promotora Larissa Buentes Frazão, do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), entendeu que houve violência contra a vítima e restrição da liberdade dela. O uso de arma de fogo para ação criminosa também foi apontado. Essas circunstâncias aumentam a pena para esse crime — que tem pena que varia de cinco a 10 anos.

Larissa também denunciou Kayo por extorsão com duas questões que poderiam aumentar sua pena: crime cometido por duas ou mais pessoas com uso de arma de fogo e ação praticada com violência. Para esse tipo de crime, sem as qualificadoras, a pena varia de quatro a dez anos. Preso em flagrante após ser apontado pelo cabo da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PM-SP) Rafael Aparecido de Oliveira como um dos suspeitos de roubo, Kayo temeu passar o início da juventude preso. “Eu saí com o psicológico abalado”, conta ele. 

Identificado pela roupa

O roubo do qual Kayo foi injustamente acusado ocorreu em agosto de 2024, no bairro Jardim Centenário, em Guarulhos, na Grande São Paulo. Em depoimento à Polícia Civil, o cabo Rafael e o soldado Vinicius Gonçalves de Souza contaram ter recebido chamado via Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) com informações sobre um possível roubo.

Durante o patrulhamento, localizaram um veículo com as características descritas pelo comando e iniciaram uma perseguição. Ainda na versão dos PMs, o veículo roubado colidiu contra uma mureta e três pessoas saíram dele. Um dos suspeitos do roubo foi detido e os demais conseguiram correr.

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Kayo foi visto pelos policiais em uma viela e preso por estar com roupas parecidas com as de um dos suspeitos do roubo. Nada foi encontrado com o jovem, que disse aos policiais estar indo trabalhar. “Eu perguntei para onde eles estavam me levando e eles falaram para eu ficar quieto”, relembra o jovem. A vítima contou ter sido abordada por um trio e disse que um deles estava armado. Kayo e outro preso, segundo o relato, ficaram com ele no banco traseiro do veículo. 

O caso foi registrado no 4º DP de Guarulhos, pelo delegado Jorge Luiz Pinheiro Filho, que decretou a prisão em flagrante de Kayo. O inquérito foi concluído em agosto de 2024, destacando que Kayo se disse inocente e que o outro preso negou a participação dele e que o conhecesse. Mesmo assim, o delegado Jorge escreveu no relatório final o contrário, que o suspeito disse estar na companhia do entregador e pediu o indiciamento da dupla.

A defesa de Kayo apresentou provas de que ele trabalhava como entregador. Foi apresentado ao juiz da audiência de custódia um print que mostrava o login do jovem no serviço de entregas.  

Reconhecimento irregular

O policial Rafael e a vítima fizeram então um reconhecimento pessoal na delegacia. Participaram Kayo, o outro suspeito e um terceiro homem — que não teve as características descritas no documento. O procedimento não seguiu o que manda o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP). O CPP diz que a pessoa que fará o procedimento deve primeiro descrever o alvo do reconhecimento. Depois, o suspeito deve ser colocado ao lado de outras pessoas que tiverem semelhança com ele.

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Com base na investigação e sem pedir nenhuma diligência, a promotora Larissa Buentes Frazão denunciou Kaio por roubo. O jovem se tornou réu e teve a prisão mantida pela juíza Priscila Devechi Ferraz Maia.

Para o advogado criminalista Damazio Gomes, a prisão de Kayo evidencia falhas graves no processo investigativo e reforça um padrão preocupante de criminalização de jovens negros no Brasil. Damazio analisou o processo a pedido da Ponte.

“A fragilidade do reconhecimento também é um fator determinante. A vítima identificou Kayo apenas após ele já ter sido apontado pelos policiais, e não há informações sobre as características das pessoas que foram incluídas na sala de reconhecimento, como determina a legislação. Esse procedimento, realizado de forma irregular, reforça suspeitas de viés racial, já que jovens negros são frequentemente identificados e condenados com base em estereótipos”, afirma Damazio.

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O criminalista aponta ainda que não houve uma investigação rigorosa. “Os policiais não buscaram testemunhas que pudessem confirmar ou refutar a participação de Kayo no crime. Além disso, os depoimentos dos agentes são praticamente idênticos, indicando uma possível combinação de versões, o que compromete a credibilidade das provas”, completa.

Liberdade

O fim do calvário de Kayo aconteceu apenas em janeiro, data da audiência do caso. Na ocasião, a juíza Priscila Devechi Ferraz Maia determinou a libertação do jovem. A magistrada admitiu que as provas contra o entregador eram frágeis.

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Kayo ainda aguarda a publicação da sentença e torce para ser absolvido. Enquanto isso, o jovem tenta retomar a vida. Ele voltou a trabalhar como entregador. “Eu continuo com mais força para poder conquistar minhas coisas. Eu estou batalhando, correndo atrás”, afirma ele. 

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), solicitando uma manifestação sobre o caso Kayo.

O MP-SP informou que só se manifesta nos autos. Já o TJ-SP disse que não se manifesta sobre questões jurisdicionais.

A SSP-SP afirmou que a prisão ocorreu pela existência de indícios da participação de Kayo no crime. “A Polícia Civil informa que o indiciado foi preso em flagrante devido à existência de indícios de sua participação no crime. O inquérito policial foi concluído dentro do prazo legal e, após a análise das provas reunidas, o Ministério Público apresentou denúncia contra o acusado. Demais informações devem ser verificadas junto ao Poder Judiciário”, diz a nota.

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