Guilherme Derrite, secretário da SSP-SP no governo Tarcísio, afirmou em ofício reencaminhado ao STF que aumento no número de mortes exige contextualização — mas piora da letalidade policial ocorreu com menos intervenções e apreensões de armas

As polícias de São Paulo prenderam menos e, mesmo submetidas a um menor números de confrontos em termos proporcionais, mataram mais pessoas ao longo de 2024 do que em anos anteriores. O cenário foi identificado pela Ponte a partir de dados revelados pelo próprio secretário de Segurança Pública estadual, Guilherme Derrite (PL), em um ofício assinado por ele no processo em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF) que trata da alocação das câmeras corporais da Polícia Militar paulista (PM-SP) pela gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos).
O documento acompanha uma manifestação da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP), que atua em defesa do governo Tarcísio no processo, do dia 12 de fevereiro, e trata especificamente de letalidade policial. Derrite argumenta na peça — na qual diz reconhecer “um esforço amplo e contínuo” para que o uso de força letal ocorra em situações excepcionais — que o número de mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) deve ser analisado não isoladamente, mas de maneira contextualizada.
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O secretário alega que, na prática internacional, o volume de mortes costuma ser comparado com outros três índices: o número de intervenções policiais (ou seja, de ações da PM em variadas circunstâncias, desde casos de perturbação de sossego a ocorrências criminais); de intervenções repressivas (como são chamadas as prisões e apreensões de armas de fogo); e a quantidade de confrontos armados. Derrite lista, ainda no documento, dados relativos a esses indicadores de 2018 ao ano passado.
“A ideia subjacente é de que as MDIP tendem a variar na mesma medida em que variam concomitantemente os fatores de ponderação, de modo que, se a intenção é comparar contextos com volume de MDIP diferentes, o ideal é que se utilize taxas, ao invés dos números absolutos”, argumenta.
Ao comparar tais indicadores, no entanto, a Ponte identificou que as forças de segurança de São Paulo, em 2024, se tornaram mais letais em relação a todos eles: ou seja, para cada morte que cometeram, as polícias do estado precisaram de um menor número de intervenções, prisões e apreensões de menores infratores, apreensões de armas de fogo, confrontos armados e envolvidos nessas disputas.
Mais mortes, menor produtividade
Em 2024, a PM realizou 30.059.421 intervenções policiais. O secretário argumenta no ofício que os anos com menor número de mortes na série histórica dos últimos sete anos, 2021 e 2022, tiveram também menor quantidade de intervenções — ainda segundo Derrite, isso representa menor risco de confronto e, consequentemente, de óbitos. Além disso, alega que, no ano passado, São Paulo teve 46.317 intervenções para cada MDIP, “o que representa cerca de 0,002% do universo das intervenções”.
O cálculo de Derrite leva em conta, no entanto, apenas as mortes cometidas por PMs em serviço 649 — ao todo, as polícias de São Paulo mataram 814 pessoas em 2024, conforme mostrou a Ponte. Além disso, o secretário deixa de fazer a mesma comparação entre mortes e intervenções nos anos anteriores, o que permitiria identificar se as forças de segurança se tornaram mais ou menos violentas com o tempo.
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No ano passado, se levadas em conta todas as MDIP, a PM-SP fez 36.928 intervenções para cada morte cometidas pelas forças de segurança. Ou seja, em números absolutos, os policiais foram mais ativos nas ruas, mas, em termos proporcionais, foram também mais violentos: nos três anos anteriores, foi necessário que a Polícia Militar atuasse mais vezes para que policiais cometessem um assassinato.
Menos prisões ou armas apreendidas
Derrite também cita no ofício que houve 132.773 prisões de criminosos e apreensões de menores infratores em 2024. Ou seja, as polícias paulistas prenderam 163 pessoas para cada uma que foi morta.
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O secretário também ignora essa comparação no documento, mas esse foi o segundo pior resultado dos últimos sete anos, ficando atrás apenas de 2020, sob gestão João Doria (PSDB), quando foram quase 156 prisões para cada MDIP. Em 2022, em que o governo estadual ficou dividido entre Doria e Rodrigo Garcia (PSDB), as polícias paulistas prenderam 291 pessoas para cada morte que cometeram.
Ainda em 2024, as forças de segurança de São Paulo apreenderam cerca de 17 armas para cada MDIP. O indicador também piorou: proporcionalmente, nos três anos anteriores, as polícias paulistas conseguiram tirar mais armas de fogo do mercado ilegal para cada assassinato que praticaram.
Derrite ainda menciona o número de confrontos armados ocorridos nos últimos sete anos. Novamente em termos proporcionais, 2024 só não foi pior do que 2020. Já se levado em conta o número de envolvidos por confronto, o ano passado foi o pior de toda a série histórica: ou seja, em termos proporcionais, mesmo confrontadas por um menor número de pessoas, as polícias paulistas estão matando mais.
Caso os mesmos indicadores de contextualização sugeridos pelo secretário sejam comparados apenas com mortes cometidas por policiais militares em serviço, ainda assim, 2024 teve piora em todos eles. Os dados foram tabulados pela Ponte e podem ser conferidos na íntegra neste link.
Alocação das câmeras por letalidade
A manifestação da PGE-SP na qual está apensada o ofício de Derrite pede ao STF que a letalidade policial seja considerada apenas um critério de priorização, e não de obrigatoriedade, na alocação das câmeras operacionais portáteis (COP) entre os policiais militares de São Paulo.
Em dezembro, o relator do processo, o ministro Luís Roberto Barroso, havia determinado que o governo Tarcísio apresentasse uma matriz de risco para alocação das câmeras e que fossem “estrategicamente distribuídas para regiões com maior índice de letalidade policial”. No mês passado, a Ponte mostrou que a PM-SP mantém sem os aparelhos quatro dos dez batalhões que mais matam em todo o estado.
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A ordem de Barroso sobre a alocação das câmeras atendeu a pedidos do Ministério Público paulista (MP-SP) e da Defensoria Pública de São Paulo (DPE-SP), que ajuizou o processo em razão da Operação Escudo. A pretensão da DPE-SP era tornar obrigatório o uso dos aparelhos em ações como aquela, que resultou em alta letalidade.
Ainda na decisão judicial, Barroso havia ordenado que o uso das câmeras seria obrigatório em três tipos de operações, desde que realizadas em regiões com disponibilidade desses equipamentos: 1) As de grande envergadura para restauração da ordem pública; 2) As que incluam incursões em comunidades vulneráveis também para restaurar a ordem pública; e 3) Operações deflagradas para responder a ataques praticados contra policiais militares, como a Escudo.
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As câmeras se concentram distribuídas atualmente entre unidades dos comandos da capital e da região metropolitana. Parte da Baixada Santista e de grandes cidades do interior também está contemplada. No decorrer do processo no STF, em manifestação de junho do ano passado, a PGE-SP afirmou que a alocação delas segue critérios da Instrução-28 PM e da Diretriz nº PM3-001/02/22, ambas normativas da própria PM. A primeira delas regulamenta a distribuição do efetivo no estado, enquanto a segunda disciplina o uso das também chamadas câmeras operacionais portáteis (COP).
O que diz a SSP-SP
A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) se a pasta entende ter ocorrido piora dos indicadores e por qual razão suas polícias se tornaram mais letais, mas não obteve retorno até esta publicação. Se houver, a reportagem será atualizada.