Representantes da extrema-direita, como o deputado Kim Kataguiri (União Brasil), que apresentou projeto para transformar em crime a prostituição nas ruas, tentam mobilizar as massas por meio de mentiras e sensacionalismo

Na sexta-feira (7/3), o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP) apresentou um projeto de lei que visa criminalizar a prostituição nas vias públicas. A proposta prevê prisão ou multa para profissionais do sexo flagrados se prostituindo nas ruas. Kim é cofundador do Movimento Brasil Livre (MBL) e ficou conhecido por ser um dos organizadores das manifestações a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Sua figura hoje representa aspectos da política reacionária, ultraconservadora e ultraneoliberal no Brasil.
Um sujeito que defende o Estado mínimo e as “liberdades individuais”, mas vive as custas do Estado para atacar quaisquer outros interesses, culturas e/ou liberdades democráticas de ser, saber e poder. Como se o livre mercado e a lógica empresarial fossem se preocupar com as demandas sociais, e fincar compromisso assíduo no combate às desigualdades, à fome e à miséria em um país de desenvolvimento econômico periférico como o Brasil. E ainda, como se todas as pessoas, grupos e/ou etnias partissem de um mesmo lugar, de um mesmo trajeto de experiências e oportunidades. Hipocrisia? Equívoco? Cinismo? Ou um pouco de cada coisa?
Leia mais: Artigo | Alegando proteger crianças, parte da esquerda ataca trabalhadoras sexuais
O reacionarismo da extrema-direita, neoliberal e conservadora não expressa apenas um desespero moral e identitário da branquitude, cisgênera, masculina e supostamente heteressexual — mas um ataque concreto aos direitos da classe trabalhadora, que têm sido fantoche nas mãos de sujeitos como Kim Kataguiri. E que tentam mobilizar as massas por meio de mentiras, sensacionalismo, discurso cooptado antissistêmico e polemização de pautas importantes a comunidades, grupos e categorias profissionais. Tudo isso, para mostrar serviço, fazer a manutenção do poder e beneficiar apenas aqueles coniventes aos seus princípios morais, éticos e ideológicos.
Em se tratando de moral e ética, a sociabilidade capitalista e burguesa têm nos mostrado que estes dois tópicos são moldáveis, distorcidos, infringidos e impostos de acordo com os interesses e perspectivas hegemônicas — além das contradições e do discurso dissimulado em que se aposta quando a realidade traduz a dinâmica da hipocrisia e incoerência com aquilo que foi dito por eles.
O cair das máscaras
Seja os escândalos de corrupção envolvendo a fé, seja o cair das máscaras daqueles que atacavam os direitos de pessoas LGBTQIA+, mas foram pegos tendo trocas sexuais com homossexuais e/ou trans e travestis na surdina; ou mesmo aqueles que condenavam o aborto, mas violentavam suas mulheres e/ou abusavam de crianças e adolescentes dentro de suas casas.
A lista de controvérsias é extensa. Mas na linha de frente deste debate, ainda que compreendendo a puta não como uma mulher sofrida, abandonada e à procura de salvação, mas como um lugar de autonomia, dissidência e cabível de escolha, é preciso desmistificar a puta também como sujeito político e categoria sociológica de trabalho.
Leia mais: Artigo | O Camera Prive e a precarização do trabalho sexual nas plataformas digitais
De acordo com Monique Prada, “por conta dos efeitos desastrosos que as políticas de repressão à prostituição têm na vida das pessoas que a exercem — em sua maioria mulheres pobres e únicas mantenedoras de suas famílias — , muitas organizações de defesa de direitos humanos, como a Anistia Internacional, preconizam há algum tempo a legalização total do trabalho sexual ao redor do mundo” (2018, Putafeminista). “Na maioria dos países, as leis sobre a atividade têm como principal objetivo acabar com ela, precarizando com isso a vida de quem a exerce e empurrando mulheres para a clandestinidade e o isolamento social” (idem).
A proposta de proibição do trabalho sexual em vias públicas, além de ser um ataque às mulheridades trabalhadoras sexuais, que de fato adentram a prostituição para fugir da miséria, da falta de oportunidades e das desigualdades sociais, não visualiza os problemas reais postos à categoria de trabalhadoras do sexo. Por exemplo, as facções criminosas e milícias que exploram mulheres e travestis, cobrando valores diversos para que elas utilizem das ruas e avenidas para exercer sua função; e ainda os prostíbulos, casas de massagem, bordeis de luxo e pensionatos, que cobram valores exorbitantes para pagamento diário, semanal ou mensal, de modo que se utilizam do sofrimento, exclusão social e falta de perspectiva e escolaridade daquelas mulheres/travestis para extorquí-las etc.
Medida equivocada e perversa
No país que ocupa por 16 anos consecutivos o 1° lugar no ranking mundial dos que mais matam pessoas trans e travestis no mundo, em que maior parte dessa população vive da prostituição compulsória — e nas esquinas, muitas vezes, vende o seu corpo por R$ 10, R$ 20 ou R$ 30 para comer ou pagar uma diária a um cafetão ou cafetina —, tal medida seria no mínimo equivocada, mas evidentemente perversa para com a população pobre e comunidades minorizadas.
No Brasil, a prostituição não é considerada crime, mas o debate sobre a legalização total ou mesmo a regulamentação se capilariza em diversos segmentos, como algumas correntes do movimento feminista e ainda das esquerdas políticas conservadoras e ortodoxas. Porém, a legislação brasileira em seu código penal parece não reconhecer o trabalhador sexual como uma categoria de trabalho, quando em seu artigo 228 veta as trabalhadoras sexuais de trabalhar em cooperativas, de modo que considera exploração sexual e facilitação da prostituição — mesmo com a Constituição de 1988 garantindo que todo trabalhador possa se organizar legalmente em cooperativas (artigo 174, parágrafo 2º, apud Prada).
Leia mais: Atrizes pornô se unem para denunciar ator e diretor por abusos sexuais
Questões que nos instigam as seguintes reflexões: quais serão os caminhos tomados para essa pauta? Quais as perspectivas consideradas para o engrandecimento ou desmantelo desta proposta? Entre os muros e alvos que representa Kataguiri e a extrema-direita, e os muros da esquerda política conservadora e ortodoxa, qual será o lugar dado a este segmento da classe trabalhadora?
É preciso coragem para assumir o incômodo dos desejos reprimidos e a falta de compreensão de um lugar, que pouco dispõe de entendimento, mas somente dos julgamentos e da curiosidade para satisfação alheia, sobretudo cisheteropatriarcal. A quem beneficia a puta fora da rua?
A puta rompe domínio patrimonial
A puta em certa instância é o rompimento da propriedade privada, seja na submissão do corpo, seja na saída do lar doméstico, ou mesmo do domínio patrimonial na figura dos homens. É a quebra da ingenuidade e da falta de autonomia. Como classe trabalhadora, ainda cheia de desproteções e falta seguridades, e como categoria de trabalho, atravessada pela ética antiética e da moral imoral.
Será a insistência no apagamento da puta um projeto de privatização? Expulsão com fins neoliberais. Ora, mas nem a puta escapa! Seriam, no trabalho sexual, as ruas espaços alugados independentes e/ou próprios e plataformas virtuais — minimamente, uma via de escape das amarras das forças empresariais, corruptivas do tráfico/exploração sexual?
Leia mais: Estudo identifica 60 casos de violência contra mulher em que policiais foram os agressores
Certamente estes caminhos configuram fugas da precarização dessa categoria de trabalho, e somente ouvindo as trabalhadoras sexuais se faz possível compreender as estratégias e problemáticas existentes. Só será possível derrubar essa investida com a mobilização coletiva das trabalhadoras do sexo e demais alianças.
O estigma vos grita: mulheres e travestis trabalhadoras, uni-vos! Que não deixemos que a história se repita. A anistia precisa ser para as vítimas e não direcionada aos criminosos. Não mais perseguições, torturas e criminalização das trabalhadoras sexuais, como aconteceu entre as décadas de 1970 e 1990 — com o resgate da “Lei da Vadiagem” e a chamada Operação Tarântula, que perseguiu travestis durante a ditadura militar.
Sophia Rivera, militante da Rede Autônoma de Travestis e Transexuais (RATTS), é fundadora e presidenta da Associação de Mulheridades, Transexuais e Travestis (AMTT), escritora transfeminista materialista decolonial, graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisadora de políticas de Assistência Social, Terceiro Setor e Gênero.