Artigo | Linchamentos modernos: como o racismo autoriza mortes públicas no Brasil

    Do Maranhão ao Rio de Janeiro, corpos negros seguem sendo alvo de violência racial, linchamentos e execução sumária. Se Yuri, Igor, Gabriel e Rafael fossem pessoas brancas a imprensa hegemônica discutiria o caso por semanas

    Yuri, de 24 anos, é negro e mora em São Paulo. No final de março, quando estava voltando para casa, foi abordado por pessoas que começaram a persegui-lo, uma delas armada. Yuri, que é publicitário, achou que estava sendo assaltado — mas era ele o suspeito de roubo. Ao ser alcançado, já na frete de seu prédio, começou seu linchamento. “Tive certeza de que ia morrer”, contou ele depois. O jovem recobrou a consciência quando policiais militares de uma base vizinha ao seu condomínio surgiram no local. Só então entendeu o motivo de ter sido agredido, ao ser apontado como suspeito de um furto.

    Gabriel é jovem negro de 26 anos de Açailândia (MA). Em setembro de 2021, ele consertava seu carro em frente ao prédio onde morava quando um casal de brancos vindos de deus-sabe-onde o agrediu, acusando-o de estar tentando furtar o próprio veículo. Mesmo explicando isso, ele quase foi morto ao ser espancado e asfixiado pelos agressores. Inclusive, o rapaz atendeu ao pedido dos agressores, um empresário e uma dentista, para sair do carro enquanto era acusado, fazendo-o com as mãos para cima, com a preocupação de deixar evidente que não oferecia risco algum. 

    Igor tem 31 anos, é jornalista e negro como eu. Em fevereiro, ele foi baleado na madrugada de segunda (24/2), quando voltava para casa na garupa de um mototáxi que pediu por um aplicativo, após fazer “bico” de garçom em um bar. No caminho, o PM da reserva Carlos Alberto de Jesus, que procurava pelos suspeitos de um suposto assalto contra sua esposa, Josilene da Silva Souza, emparelhou o carro junto à moto e deu dois tiros no jornalista, derrubando ele e o condutor. Igor passou horas escoltado no hospital, sem poder receber visita da família, como suspeito de um crime que não cometeu. 

    Rafael tem 32 anos, é negro e artista. Ele estava no Lollapalooza no último final de semana quando seguranças do festival — todos brancos — o abordaram. A desculpa é que ele era “parecido” com um suspeito de furto e, por isso, queriam revistá-lo. “Eu disse que eles não poderiam fazer isso e eles disseram ou por bem… a gente precisa abrir a sua bolsa”, relata. Com medo, o artista aceitou ser revistado.

    Pedro Henrique tinha 20 anos, feirante, negro. Estava se preparando para mais um dia de feira quando Natalia Teles o acusou de agressão dentro de uma boate. O companheiro dela, o PM Fernando Ribeiro Baraún, atirou contra Pedro após um suposto desentendimento com o feirante. Pedro não vai mais voltar para casa. O caso aconteceu ontem (6/4) no Rio de Janeiro.

    Todos os casos acima têm algo em comum: o racismo e a violência pública, o castigo público de corpos que são passíveis de castigo só por existirem. Eis novos pelourinhos surgindo. Quatro somente nesses casos. Em três, as vítimas quase morreram pelas mãos do justiçamento e do linchamento. 

    Parafraseando o poeta Akins Kintê, parece Strange Fruit, parece Alabama, mas é só o Brasil racista. Basta uma suspeita ser erguida que todas as etapas da justiça são ignoradas. A punição vem em público, no estilo joga pedra na Geni. E mesmo quando um dos algozes é um membro do sistema de justiça e segurança pública, um policial aposentado, ele prefere executar a sentença a entregar o caso para investigação e devido processo legal. 

    A veia escravagista pulsa em nossa sociedade que já adora uma punição. A mesma sociedade que, ao passar por uma abordagem com um jovem negro sendo revistado, diz: “Se esse aí fosse direito, a PM não teria parado.” Aquela que goza com corpos tombados, sangrando no chão para logo trocar de canal e elevar orações para expiar seus pecados com algum telepastor. Sempre são os outros os ladrões, os criminosos, os suspeitos, os meliantes. Aqueles outros com a pele preta, aquele povo que essa gente adoraria eliminar e tem o feito constantemente há, pelo menos, 400 anos. 

    Se Yuri, Igor, Gabriel e Rafael fossem brancos, ah… aí a coisa mudava de figura. A imprensa hegemônica elevaria e discutiria o caso incansavelmente por semanas. Apresentadores vespertinos estariam espumando pela boca, condenando o linchamento. Porque o corpo branco não é socialmente feito para ser linchado… ah, não mesmo. A violência ao corpo branco de classe média merece atenção. Corpos e corpos tombados constantemente são todos bandidos. 

    Li um comentário em uma reportagem que publicamos sobre as 77 crianças e adolescentes mortos pela PM no Estado de São Paulo. Dizia, basicamente que, se esses 77 guris não tivessem feito nada, estariam vivos (esta e outras pérolas você confere nos comentários do nosso Instagram. Essa gente é bem engajada). Penso em Ryan, de 4 anos, Ágatha, de 8, João Pedro e Marcos Vinícius, ambos com 14. Na lógica mesquinha dessa gente, eles fizeram algo, são culpados de sua própria morte.

    Ou, talvez, já esteja assumido quase publicamente a política adotada por um certo professor Caveira de um curso preparatório de concursos públicos, história que demos aqui na Ponte: “Por isso quando eu entrava chacinando eu matava todo mundo: mãe, filho, bebê, foda-se! Eu já elimino o mal na fonte.”

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