Artigo | É urgente proteger as mulheres das armas de fogo

    Maior disponibilidade de armas de fogo na sociedade nos últimos anos agravou cenário da violência doméstica — desmistificando a ideia que associa violência armada apenas à criminalidade e às disputas entre desconhecidos

    Ilustração: Antonio Junião/Ponte Jornalismo

    A violência armada provoca a morte de milhares de pessoas a cada ano no Brasil, além de deixar inúmeras pessoas feridas e com sequelas que afetam não só as vítimas diretas, mas também seus familiares. Nesse triste universo, chamamos a atenção para o emprego da arma de fogo no cometimento de violências que atingem as mulheres no seu cotidiano, considerando o cenário de maior armamento da sociedade brasileira nos últimos anos.

    São milhões de armas nas mãos de cidadãos, adquiridas para fins de defesa pessoal, prática esportiva ou coleção. Sem falar no arsenal de armas desviadas e usadas para cometer crimes. Sabemos que as mulheres sofrem sistematicamente violência baseada em gênero — ou seja, são vítimas de diversas formas de agressão que lhes são dirigidas pelo fato de serem mulheres.

    Leia mais: Violência com armas contra mulheres cresce e exige controle orientado a gênero, diz estudo

    O gênero feminino representa então um fator de risco de sofrer agressões, que atingem meninas, jovens e mulheres adultas dentro ou fora de casa e são provocadas principalmente por pessoas muito próximas. A presença da arma de fogo nesse contexto vem agravar o risco de morte e de outras violências, considerando o maior potencial de letalidade desse instrumento.

    Pesquisa do Instituto Sou da Paz divulgada no 8 de março mostra que, em 2023, mais de 4 mil mulheres foram atendidas no sistema de saúde vitimadas por violência não letal envolvendo arma de fogo, que foi empregada majoritariamente no cometimento de agressões de natureza física, psicológica e sexual. Isso representou um aumento de 23% em relação ao registrado em 2022. A agressão armada ocorre, sobretudo, em casa (44%) e na rua (32%). No caso das violências psicológica e financeira, grande parte acontece em casa, indicando como a arma de fogo é usada como meio de coação e controle da mulher.

    Agressores são pessoas próximas

    Cerca de metade dos agressores são pessoas próximas, como parceiros ou ex, familiares e conhecidos, e em mais de um terço dos casos a mulher já havia sofrido outros episódios de violência. Esses dados ajudam a desmistificar a ideia que associa a violência armada apenas à criminalidade urbana dos assaltos e das disputas que resultam em homicídios entre desconhecidos.

    Na verdade, no caso das mulheres, a sua presença representa um risco de agravamento das situações de violência doméstica e baseada em gênero, que acontecem em casa e nos seus arredores, podendo alcançar outros ambientes, como locais de trabalho e de lazer frequentados pela vítima.

    As mulheres também são alvo de violência baseada em gênero cometida por desconhecidos nas ruas: a maioria dos casos de violência sexual envolvendo uso de arma de fogo atendidos na saúde em 2023 ocorreu na rua (58%).

    Leia mais: 81% das vítimas de feminicídio nunca haviam registrado denúncia contra seus agressores

    Além das agressões não letais, metade das quase 4 mil mulheres assassinadas em 2023 foi morta com arma de fogo, realidade que se repete a cada ano no país. Em geral, os homicídios ocorrem em via pública, mas se nota uma diferença importante entre vítimas homens e mulheres. Enquanto os homicídios masculinos ocorrem na maioria na rua e apenas 12% em casa, no caso das mulheres, 28% dos assassinatos com arma de fogo aconteceram dentro de casa em 2023. 7

    O principal alvo dessa violência são as mulheres adultas (20 a 39 anos), que somam quase 60% das vítimas fatais, mas o risco começa a se manifestar na adolescência, com alta incidência a partir dos 15 anos. Em 72% dos casos, as vítimas são mulheres negras, um padrão de desigualdade racial que se mantém ao longo do tempo.

    Como se sabe, a violência contra as mulheres é um problema social que resulta de múltiplas causas e, portanto, exige políticas públicas no campo da segurança e justiça, mas também da educação, assistência social e saúde, que devem ser implementadas em curto, médio e longo prazos. Já contamos, inclusive, com medidas diretamente relacionadas ao controle da violência armada sob perspectiva de gênero, a partir da legislação que restringe o acesso a armas de fogo a agressores e que inclui a presença de arma de fogo na avaliação do grau de risco a que a vítima está submetida desde o registro inicial da ocorrência, com vistas a evitar desfechos mais trágicos. São medidas da maior importância que vêm contribuir para a implementação da Lei Maria da Penha — referência nacional e internacional no enfrentamento da violência contra as mulheres

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    Precisamos avançar na implementação desses mecanismos que permitem a adoção de medidas protetivas de urgência e a apreensão cautelar de armas de fogo. Isso depende não só da adesão dos operadores nas delegacias, promotorias e varas de justiça, mas também da capacitação de outros agentes protetivos, como policiais militares e guardas municipais, que frequentemente atendem ocorrências de violência contra a mulher.

    É preciso seguir incluindo esse olhar para os gêneros nas políticas de controle de armas e assim fortalecer as políticas de enfrentamento da violência contra as mulheres e dos altos níveis de violência armada que acomete o país. São muitas as Ângelas, Jenifers, Luanas e Bárbaras que exigem ser protegidas.

    Cristina Neme, mestre em Ciências Sociais e especialista em Sociologia da Violência, foi pesquisadora da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo e é coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz

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