Vítima de investigador condenado por importunação sexual diz sofrer perseguição na Polícia Civil

    “Me tornei o problema”, diz escrivã que denunciou colega. Ela relata isolamento e ausência de acolhimento dentro da instituição. Mesmo com condenação e demissão do agressor, ela ainda toma medicações e se sente revitimizada

    A escrivã Laís apresentou denúncia que levou à abertura de um processo criminal contra o investigador Franz Lopes Assunção, que já havia assediado outras colegas | Foto: Reprodução/Alfacon

    Desde que denunciou um colega por importunação sexual, em dezembro de 2023, uma escrivã da Polícia Civil de Minas Gerais vive um cotidiano de hostilidade, isolamento e represálias dentro da instituição à qual serviu por 16 anos. A reportagem da Ponte teve acesso à íntegra da sentença, laudos psicológicos e ouviu com exclusividade a vítima. Mesmo após a condenação do agressor e sua demissão oficial, a servidora — que será identificada nesta reportagem como Laís — afirma que a estrutura da corporação continua a silenciá-la.

    “Hoje impera um ambiente tóxico, totalmente inseguro, com retaliações veladas. Recentemente vivenciei com minha chefia, após a condenação, os gritos, ameaças, o sentimento de retaliação que passei a sentir. Alguns colegas me evitam”, diz a vítima do ex-colega.

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    A denúncia que Laís apresentou em dezembro de 2023 levou à abertura de um processo criminal contra o investigador Franz Lopes Assunção. Em abril de 2025, ele foi condenado a sete anos de prisão em regime semiaberto por dois crimes de importunação sexual cometidos dentro das delegacias de Governador Valadares, cidade do Vale do Rio Doce. A decisão também determinou a perda do cargo público, o recolhimento imediato das armas em seu nome e a proibição de entrada nas unidades da Polícia Civil na cidade.

    Dentro da instituição, porém, nada mudou. “A condenação saiu. Ele foi demitido. Mas eu continuo adoecendo sozinha, convivendo com o medo e a descrença. Ninguém me protegeu. Nenhum cuidado institucional foi oferecido”, resume.

    Medo e ausência de acolhimento

    O episódio de violência sexual ocorreu dentro da Delegacia de Plantão. No dia 11 de dezembro de 2023, Laís estava sozinha no cartório quando o investigador se aproximou. “Ele tentou me forçar a fazer sexo oral naquele momento ou até o final do plantão. Me disse: ‘pega no meu pau, olha como ele tá duro’ e apertou o membro contra a calça para realçá-lo.”

    Mesmo abalada, ela hesitou em denunciar. Quinze dias depois, buscou a chefia imediata. A resposta veio em tom de desestímulo: “Vamos achar outro meio sem ser denunciá-lo, pois não vai dar em nada”, teria dito uma das responsáveis pela unidade. A denúncia só avançou após orientação de uma segunda autoridade policial. Laís procurou a Delegacia da Mulher e, em seguida, a Corregedoria e o Ministério Público. Com isso, o processo foi instaurado. “Fiquei com medo de ser desacreditada. E foi o que aconteceu. Desde o primeiro momento”, conta.

    Com o avanço das investigações, surgiram outras vítimas e testemunhas. Uma delas, identificada como Marina* (nome fictício), relatou que, em 2020, recebeu do investigador, durante o expediente, uma imagem do seu órgão genital enviada pelo celular, fora de qualquer contexto profissional. O episódio também foi reconhecido pela Justiça como crime de importunação sexual e integra a condenação de Franz Lopes.

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    Segundo Marina, a foto foi enviada enquanto conversavam sobre um procedimento de rotina. Ela não denunciou à época por medo de represálias, mas decidiu relatar o caso quando soube que outra mulher havia rompido o silêncio. “Foi quando vi que ele já tinha feito isso de novo que entendi que não era uma brincadeira isolada”, consta em seu depoimento à Corregedoria.

    Nenhuma das vítimas, segundo apuração da Ponte, recebeu suporte institucional da Polícia Civil durante ou após o processo. Para Laís, o enfrentamento ao sistema gerou consequências diretas à sua saúde e segurança: “O ambiente de trabalho se tornou hostil. Medo de retaliação, conflitos diretos com chefias, ameaças veladas de transferência de cidade. A sensação era de que o problema era eu.”

    Fobia, hospitalizações e tentativas de suicídio

    Os danos causados pela violência sexual que Laís sofreu dentro da delegacia foram agravados, segundo ela, pelo abandono institucional. A Polícia Civil não ofereceu nenhum acompanhamento psicológico ou suporte após a denúncia. Pior: manteve a vítima trabalhando sob as mesmas chefias e no mesmo espaço em que atuava o agressor.

    “Essa situação acabou com meus sonhos, principalmente o de ser mãe. Com as medicações que precisei e ainda preciso tomar, não posso sequer pensar em engravidar”, relata. “Agora estou assim, com fobia social, afastada por 60 dias. Vários gatilhos foram puxados na minha cabeça. Foram várias idas ao hospital do dia 11 de abril pra frente”, contou à Ponte, referindo-se ao período imediatamente após a sentença judicial que condenou seu agressor.

    A reportagem teve acesso ao laudo elaborado por um psicólogo clínico, que acompanhou a paciente entre agosto de 2024 e abril de 2025. O documento descreve um quadro de “transtorno de ansiedade generalizada, transtorno depressivo recorrente, fobia social e crises de pânico” associadas ao ambiente institucional.

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    Segundo o psicólogo, Laís chegou ao consultório com insônia, crises de choro, retraimento social, ideação suicida e episódios de agitação motora quando lembrava o fato traumático. Durante os atendimentos, ela relatou duas tentativas de suicídio, uma delas exigindo a mobilização de familiares e colegas próximos.

    “A paciente relatou ter pensamentos suicidas, chegando a realizar ao menos duas tentativas de suicídio, o que exigiu minha intervenção direta de sua rede de apoio, composta por sua mãe e marido”, diz o laudo. O texto técnico também afirma que cada nova convocação institucional — seja para depoimentos, sindicâncias internas ou audiências — representava um gatilho de revivência traumática, com agravamento dos sintomas clínicos. “Apresentava uma intensificação dos sintomas, caracterizando episódios de revitimização.”

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    Mesmo após a Justiça conceder uma medida cautelar de afastamento contra Franz Lopes, proibindo-o de frequentar unidades da Polícia Civil na cidade, Laís afirma que a corporação não comunicou oficialmente a decisão ao restante da equipe. A omissão a expôs ao risco e alimentou a sensação de desamparo. “Fiquei à mercê da minha própria sorte. A chefia superior mais uma vez se omitiu e não deu publicidade à medida cautelar. Assim, nenhum outro policial tinha conhecimento, apenas a chefia e eu.”

    Durante o processo, o policial seguiu atuando normalmente. Era, inclusive, examinador em bancas do Detran. “Ele entrava e saía da delegacia como se nada tivesse acontecido, enquanto eu precisava me medicar para conseguir dormir.”

    O laudo também registra o impacto simbólico da violência: o episódio ocorreu poucos dias após o casamento de Laís, afetando diretamente sua autoestima, identidade de gênero e confiança interpessoal. “Apresentou falas com conteúdo de desvalorização pessoal, perda de interesse por atividades antes prazerosas, retraimento social e crises de pânico quando exposta a ambientes ou situações que remetem ao contexto do ocorrido.”

    ‘Função pública exige ética

    Para o advogado Márcio dos Santos, responsável pela defesa de Laís, a sentença representa uma afirmação jurídica importante — mas ainda isolada. Ele aponta que, ao responsabilizar penalmente um agente público por importunação sexual contra colegas de profissão, o Judiciário envia uma mensagem clara de que a impunidade não pode ser a regra dentro do serviço público.

    “Do ponto de vista jurídico, trata-se de uma importante afirmação da responsabilização penal de agentes públicos que, ao invés de protegerem a sociedade, cometem crimes contra a dignidade sexual de colegas de profissão”, disse à Ponte. Dias destaca ainda o aspecto simbólico da condenação: “Essa decisão representa um ponto de inflexão dentro das forças de segurança, tradicionalmente marcadas por uma cultura masculina e hierárquica que costuma silenciar ou minimizar denúncias feitas por mulheres.”

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    Para ele, a perda do cargo imposta pelo juiz reforça o entendimento de que a função pública exige conduta compatível com os princípios da administração. “Ao reconhecer judicialmente que uma servidora pública foi alvo de importunação dentro do seu ambiente de trabalho, a Justiça valoriza a integridade da mulher e afirma que não há hierarquia de gênero no cumprimento da lei.”

    Apesar da condenação de Franz Lopes, os dados mostram que casos como o de Laís não são exceção. Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 59% das mulheres que atuam nas forças de segurança já sofreram assédio no trabalho. Entre essas, 36% afirmaram que os episódios ocorreram dentro da própria delegacia. A maioria não denunciou por medo de retaliação.

    ‘Nada vai apagar o que ele fez

    Apesar do adoecimento, das tentativas de suicídio e do isolamento dentro da própria corporação, Laís afirma que não se arrepende de ter denunciado. Para ela, a condenação de Franz Lopes representa uma vitória simbólica, mas solitária. “Nada vai apagar o que ele fez a mim e às demais envolvidas, ainda hoje sofro as consequências, mas não me arrependo pois tenho certeza que fiz o que era correto”, diz.

    A sensação de abandono institucional permanece. Após a sentença, Laís diz ter esperado algum tipo de reconhecimento, acolhimento ou plano de suporte — nenhum veio. “A chefia continuou a me tratar como um incômodo. Alguns colegas disseram que a decisão foi ‘muito pesada’. Mas eu digo: então coloque sua esposa ou filha na minha situação e depois venha conversar.”

    “Quando saiu a demissão, era o meu nome que estava lá. Uns me parabenizando, outros reprovando. Mas eu jamais recuaria”, afirma.

    O que dizem as autoridades

    A reportagem procurou a Polícia Civil de Minas Gerais, que respondeu por meio de nota oficial. A corporação afirma que o servidor “foi devidamente investigado e indiciado” e que, no âmbito interno, ele foi “punido pela prática de infração disciplinar, com a devida publicação no Diário Oficial”. Ressaltou ainda que, em cumprimento a ordem judicial, o servidor “foi demitido e não integra mais os quadros da instituição”.

    Em relação às medidas institucionais para proteger vítimas de assédio, a corporação declarou que “realiza campanhas permanentes de conscientização, divulga canais oficiais de denúncia e apura, com rigor, todas as ocorrências recebidas”. Também afirmou zelar por “um ambiente de trabalho saudável e livre de todas as formas de assédio”.

    Laís, no entanto, diz que essa proteção nunca se concretizou. “Mesmo com a condenação, continuo adoecendo sozinha, convivendo com o medo e a descrença.”

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