Tarcísio recebe aval do STF e PM-SP não terá mais câmeras com gravação ininterrupta

Acordo homologado nesta quinta-feira (9/5) também deixa brechas para que o equipamento não seja usado em operações policiais

Uso de câmeras acopladas aos uniformes de policiais militares do estado de São Paulo para registro das suas ações ajudou a reduzir violência policial | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Um acordo homologado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, sobre as câmeras corporais usadas pela Polícia Militar de São Paulo não prevê a gravação ininterrupta das imagens. Esse modelo é atualmente adotado no Estado e é considerado o mais adequado por especialistas por permitir maior transparência. O texto também deixa brecha para que o equipamento não seja usado em operações policiais. A decisão foi publicada nesta quinta-feira (8/5).

O acordo foi firmado entre o governo Tarcísio de Freitas e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DEPESP) após três audiências conduzidas pelo Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (NUSOl), do STF. A homologação do acordo permite que o governo de São Paulo dê início à execução do contrato com a Motorola. A empresa norte-americana venceu em julho do ano passado o pregão eletrônico para fornecer esses equipamentos. 

Leia também: PM mantém sem câmeras quatro dos dez batalhões mais letais de São Paulo

Ficou acordado que será elaborado um termo aditivo ao contrato para aumentar o número de câmeras corporais em 25%. O plano é que a polícia paulista tenha 15 mil câmeras à disposição e que 80% delas sejam alocadas para unidades de alta e média letalidade. A corporação tem hoje cerca de 10 mil equipamentos.

O modelo de câmeras da Motorola adquirido por Tarcísio não permite a gravação ininterrupta de imagens. Isso os difere dos equipamentos atualmente usados pela PM, que são da também norte-americana Axon, e que passaram a funcionar em 2021. 

No modelo atual de câmeras, os policiais acionaram o equipamento para que a imagem passe a ser gravada em uma resolução melhor e para que o áudio passe a ser registrado.

A proposta de Tarcísio, referendada pelo STF, é para um acionamento manual. O acordo prevê que ele não seja restrito ao policial e que, por vias remotas, o Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) também possa ligar o dispositivo.

Fim da gravação ininterrupta

Desde que anunciou o edital para aquisição das câmeras, o governador bolsonarista já havia abandonado a gravação ininterrupta como requisito para compra pelo Estado. Na época, 18 entidades da sociedade civil — entre elas o CESeC, o Justa, o Movimento Independente das Mães de Maio e a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio — publicaram uma nota criticando a mudança prevista por Tarcísio. 

“Ao prever câmeras que apenas podem ser acionadas após uma decisão discricionária do policial (ainda que remotamente pelo gestor), que não gravam ininterruptamente e ainda incorporam outras funcionalidades como leituras de placas veiculares e identificação de pessoas, a PMESP gera desconfianças sobre a manutenção do programa”, disse o texto. 

Leia também: Operação Escudo: MP arquivou 23 de 27 investigações sobre mortes cometidas pela PM

Gabriel Sampaio, diretor de litigância e incidência da ONG Conectas Direitos Humanos, diz que a gravação ininterrupta gerava garantias à sociedade e aos próprios policiais. “Essa modalidade de gravação é a que mais dá resultado em um país em que o debate sobre a letalidade policial é extremamente importante, sobretudo por causa de seus impactos racializados, como nós bem conhecemos na literatura e nas estatísticas sobre letalidade”, afirma ele.

As imagens obtidas graças à gravação ininterrupta foram elementos fundamentais para sustentar a acusação do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) em pelo menos dois casos da Operação Escudo — que vitimou 28 pessoas. 

São eles os das mortes de Jefferson Junio Ramos Diogo, 34, e de Rogério Andrade Jesus, 50, Os registros feitos em “baixa resolução” —  quando os PMs não acionaram a gravação em melhores condições, mas ainda sim o registro das imagens — foi elemento para tornar os PMs réus. Nos termos do acordo firmado pelo governo e a Defensoria, existe a determinação de que o Copom faça o acionamento remoto caso o equipamento não tenha sido ligado pelo policial. 

No caso de Jefferson, os PMs ainda se colocaram de lado pra tentar evitar a filmagem. Um dos policiais que participou desta ação foi Samuel Wesley Cosmo, que foi morto na Operação Verão. 

Um dos policiais envolvidos na morte de Rogério foi acusado pelo MP-SP de “obstruir sua câmera operacional portátil (COP) para que nada fosse filmado e em forjar a existência de uma arma de fogo que estaria na posse da vítima”.

Para Felippe Angeli, coordenador de advocacy do JUSTA, a o fim da gravação ininterrupta é uma derrota. “São diversas as pesquisas nacionais e internacionais que demonstram a importância desse modelo de gravação, especialmente na perspectiva do controle do trabalho policial especialmente em relação ao controle de letalidade, de desvios, de descaminhos eventualmente cometidos por policiais”, avalia. 

Apesar das críticas de especialistas, a mudança no modelo encontra respaldo em uma portaria do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MPSP). A pasta publicou em maio do ano passado uma padronização sobre o uso de câmeras corporais pelos agentes de segurança pública. O texto fala que a gravação deve ser preferencialmente ininterrupta, mas não fala em obrigatoriedade. 

‘Razões técnicas’ podem dispensar equipamento

O acordo também trata da obrigatoriedade e do uso de câmeras em operações, mas faz uma ressalva. O uso da tecnologia só é obrigatório em regiões onde há disponibilidade dos equipamentos. A partir dessa condicionante, a câmera deve ser utilizada nas ações em comunidades vulneráveis e nas ações deflagradas após ataques contra policiais — como foram a Escudo e Verão. 

Outro ponto previsto é que, caso seja necessário o deslocamento de tropas para a realização dessas operações, deve ser dada prioridade para batalhões que usem câmeras. O texto, contudo, dá brecha para que policiais sem o equipamento participem da ação. Isso acontece porque, caso a regra não seja cumprida, a Polícia Militar pode apresentar “razões técnicas, operacionais e/ou administrativas” que justifiquem o não uso sem uma sanção administrativa prevista. 

A falta do uso de câmeras dá mais poder ao testemunho de policiais, já que não oferece o contraditório. “Há uma preocupação muito concreta para que haja uma posição assertiva do governo do Estado em relação a essas operações que devem ser marcadas pelo planejamento”, avalia Gabriel Sampaio.

Um exemplo é a investigação sobre a morte do encanador Willians Santana, de 36 anos, que ocorreu na Operação Escudo. Willians foi morto com oito tiros dentro de casa, no Guarujá, litoral de São Paulo, em 18 de agosto de 2023. Os policiais que o mataram não usavam câmeras nas fardas. O caso foi arquivado. 

Exigências de transparência

O governo Tarcísio deverá informar mensalmente ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) quantos procedimentos administrativos foram instaurados para apurar possíveis usos incorretos das câmeras. Outro ponto acordado é a transparência quanto à efetividade das câmeras.

O governo deverá desenvolver indicadores que avaliem a eficácia dos itens. Entre os indicadores estão: o percentual de requisições das imagens pela polícia judiciária ou pela justiça; a proporção entre o número de requisições não atendidas (por falhas ou ausência de registro, por exemplo) e o número de processos administrativos instaurados para apurar situações como essas.

Assine a Newsletter da Ponte! É de graça

Deve constar, ainda, o número de vídeos revistos por superiores em que tenha sido detectado algum uso incorreto (como obstrução ou desvio proposital). O governo Tarcísio também deverá publicar um relatório anual de monitoramento e avaliação sobre o uso das câmeras pelos policiais e tornar público quais são os batalhões que usam câmeras e o quantitativo delas.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude
Inscrever-se
Notifique me de
0 Comentários
Mais antigo
Mais recente Mais votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários

mais lidas

0
Deixe seu comentáriox
Sobre a sua privacidade

Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.