Favela na região central de São Paulo teve gritos em celebração ao presidente e críticas ao governador, culpado por truculência policial. Acordo anunciado por ambos os governos para a compra assistida de imóveis ainda não foi formalizado

Famílias da favela do Moinho, na região central de São Paulo, atribuíram ao governo Lula (PT) o acordo firmado entre a União e o estado na quinta-feira (15/5) para viabilizar imóveis gratuitos no processo de reassentamento delas. Durante as comemorações após o anúncio da medida, o presidente teve o nome celebrado na comunidade, enquanto o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) foi criticado.
Passada a euforia, os moradores se mantêm alerta em relação à presença da Polícia Militar paulista (PM-SP) no entorno e aguardam esclarecimentos sobre como se dará o cumprimento da promessa. “A comunidade sempre acreditou no presidente Lula, que era o único ser humano que podia nos ajudar, o povo da União, porque o povo do Tarcísio queria nos expulsar daqui através da bala, do cacete”, disse, à Ponte, o pedreiro Daniel Mendes, 41, que deixará o Moinho depois de 12 anos, junto da esposa e da filha.
Leia também: Moradores da favela do Moinho celebram acordo para casas gratuitas
A dona de casa Leidivania Domingas, de 30 anos, também atribuiu o acordo à União. “O Lula não vai deixar a gente na mão, vai dar para a gente uma moradia digna, e não o que o Tarcísio prometeu, que era truculência policial, abuso de autoridade. Tudo o que vivi aqui foram momentos de terror, mas hoje, dia 15 de maio, estou super feliz”, afirmou a maranhense, que vai desocupar um barraco na comunidade junto do marido e de dois filhos ainda pequenos, um menino de nove e uma bebê de um ano.
O anúncio do acordo foi feito na sede da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SDUH) da gestão Tarcísio, com a presença do chefe da pasta, o secretário Marcelo Cardinale Branco, e do ministro das Cidades, Jader Barbalho Filho. Ficou acertado que cada família terá agora a compra assistida de um imóvel de até R$ 250 mil — a União vai bancar R$ 180 mil, enquanto o estado vai aportar os R$ 70 mil restantes. Até então, era oferecido a cada uma delas um contrato de financiamento dentro das opções que opera a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), vinculada ao governo estadual. Muitas famílias viam esse modelo como uma dívida insustentável.
Leia também: Derrite e Nunes associam Cracolândia vazia ao Moinho, mas usuários seguem no Centro e relatam expulsão
A coletiva de imprensa na qual foi anunciada a compra assistida foi transmitida aos moradores na favela enquanto uma comitiva federal estava presente. Não havia representantes de Tarcísio na comunidade, a não ser a PM-SP, que mantinha um cerco ao local.
Presidente da Associação de Moradores da Favela do Moinho, Yasmin Moja Flores criticou o governador na ocasião. “Moradia não é mercadoria. Fora, governo fascista do estado. Todas as nossas mortes foram compensadas hoje. Todo mundo que lutou lá atrás, hoje é mérito deles, não é só meu, não é só da associação, é mérito de todos os moradores”, disse.
Parlamentares alinhados ao governo Lula também estiveram na comunidade, entre elas as deputadas estaduais Paula Nunes e Ediane Maria, ambas do PSOL, e as vereadoras Keit Lima (PSOL) e Luna Zarattini (PT). Da base de Tarcísio, compareceu apenas o deputado estadual Capitão Telhada (PP), mas na quarta (14/5), ocasião em que interagiu com policiais que faziam uma operação e foi repreendido por moradores.

União teve atuação tímida até acordo
Antes do anúncio da compra assistida dos imóveis, no entanto, o governo Lula era alvo de uma cobrança crescente, por não dar uma solução contundente ao reassentamento dos moradores do Moinho ainda que a União seja o ente proprietário do terreno em que está a favela.
Em audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) ao final de abril, a própria presidente da associação da comunidade havia cobrado uma medida mais efetiva, para que a gestão federal ampliasse o crédito disponível aos moradores ou entregasse habitações já prontas. “Tendo em vista que hoje a União tem vários terrenos no Centro, eles não poderiam ceder alguns como troca? A gente dá a área do Moinho, e eles dão outra área para construir conjuntos habitacionais para a gente”, disse na ocasião, em que foi aplaudida por moradores.
Naquele mesmo mês, o governo Tarcísio, que tenta nesse processo obter a posse do terreno, também havia cobrado a gestão federal. Em uma nota técnica do dia 14 de abril, a Secretaria Nacional do Patrimônio (SPU), submetida ao Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), havia desautorizado demolições de casas na comunidade e exigido um aumento dos valores de financiamento às famílias. Em resposta, a gestão estadual comunicou, em nota ao jornal Folha de S.Paulo, não haver impedimento para que a União aportasse ela própria recursos extras para os moradores.
Leia mais: Favela do Moinho tem dia de terror com operação da PM-SP para CDHU demolir casas
Lula ainda foi cobrado pelas famílias em meio à truculência protagonizada pela PM de Tarcísio na primeira metade desta semana, quando a CDHU iniciou a derrubada de barracos na favela. A Ponte registrou o desabafo de uma mãe também contra o presidente após o filho ter sido baleado com balas de borracha pelas costas quando tentava sair para ir ao trabalho, na terça-feira (13/5).
“Até quando o Choque vai vir nos humilhar? Até quando a CDHU vai fazer essa palhaçada? Até quando, Lula? Responde que a terra é sua, responde. Na minha casa, ninguém entra sem a minha permissão. Se eles estão aí, a permissão é sua, Lula”, disse na ocasião Cíntia Bonfim da Silva, de 40 anos.
Já na quarta, o mediador da associação de moradores, Fernando Ferrari, cobrou uma postura mais incisiva do governo Lula. “A gente precisa de uma comitiva do governo federal aqui na comunidade neste momento, já que está se intensificando as violências dentro dela”, disse.

Lula contrapôs Tarcísio após operação da PM-SP
Ainda na terça, a gestão Lula emitiu um comunicado ao fim do dia afirmando não autorizar a demolição de casas na favela, o que era feito desde segunda (12/5) pelo governo Tarcísio, segundo o qual, até então, o Estado estava amparado por um ofício da própria União. A gestão federal afirmou ainda não compactuar com o uso da força policial contra a população, já que, naquela data, a PM-SP havia feito uma operação com uso de bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha.
Antes do governo Lula emitir tal comunicado, no entanto, ainda durante a manhã de terça, a Ponte questionou a SPU se as demolições estavam mesmo autorizadas e se a pasta entendia ser necessária presença da PM-SP no local. Em resposta, o governo Lula limitou-se a destacar, em uma nota, o trecho de um ofício encaminhado no dia anterior ao estado que falava em “descaracterização”, sem dizer expressamente se havia ou não dado aval para que os barracos fossem demolidos.
Leia também: Lula volta atrás após operação da PM-SP e nega aval a Tarcísio para demolições no Moinho
Já no segundo comunicado — passada a operação policial, em que três pessoas foram baleadas com munição não letal e outras duas foram presas —, o governo Lula esclareceu que o ofício enviado à gestão Tarcísio em um primeiro momento não dava anuência para demolições e, sim, para a descaracterização de imóveis (sem definir o que seria isso), condicionada a uma atuação “cuidadosa, para evitar o impacto na estrutura das casas vizinhas e minimizar a interferência nas atividades cotidianas da comunidade.”

Cumprimento de acordo não está claro
Agora com o acordo anunciado por ambos os governos, os moradores ainda mantêm dúvidas sobre o cumprimento da nova oferta de moradia. À Ponte, o próprio Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos assumiu, em nota, que o pacto dos dois entes não está formalizado. “A partir do ato politico de ontem [quinta], haverá um conjunto de providências e atos administrativos para dar seguimento tanto ao processo de cessão do terreno quanto de alocação das famílias”, comunicou.
Há famílias, por exemplo, que já haviam aceito um contrato de financiamento da CDHU em regiões mais distantes, mas que, se soubessem que não haveria o custo da aquisição, optariam por um imóvel no Centro. “A maioria foi para bem longe, porque os custos iam sair muito caro. A gente não quis aceitar aqui perto porque ia sair muito caro, com condomínio, as parcelas, e tudo”, diz o entregador Luiz Carlos, de 31 anos, que se prepara para sair da comunidade junto da esposa e dos três filhos, ainda crianças.
Também contatada pela Ponte, a SDUH não esclareceu se os moradores poderão desistir da escolha anterior e optar por um outro imóvel. A pasta vinculada à gestão Tarcísio reafirmou apenas informações já divulgadas no dia anterior. “Todas as famílias que já assinaram contratos ou realizaram suas mudanças também entrarão nesta nova resolução por meio de uma portabilidade de contratos”, diz.
Leia também: ‘Foi porque ele é preto’: jovem morto pela PM em Paraisópolis estava desarmado, diz familiar
O governo estadual também não esclareceu se será a CDHU que manterá a interlocução com as famílias. Já a gestão federal, por meio do MGI, disse apenas que a compra assistida dos imóveis será feita por meio do programa Minha Casa, Minha Vida. Na quinta, mesmo integrantes da comitiva federal presentes no Moinho não souberam dizer se as demolições seriam mantidas e se a PM-SP seguiria no local. Estavam presentes na comunidade Kelli Cristine de Oliveira Mafort, Secretária-Executiva da Secretaria-Geral da Presidência da República, e Augusto Rabelo, secretário nacional de habitação.
Ao final da tarde da quinta, policiais do 7º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (BAEP) e da Força Tática se mantinham apenas no entorno da comunidade, enquanto moradores explodiam fogos de artifício em comemoração. Nesta sexta (16/5), a favela amanheceu apenas com uma base móvel de policiamento rotineiro na Rua Doutor Elias Chaves, que dá acesso ao Moinho. A CDHU esteve presente no local, mas apenas para acompanhar mudanças. De 854 famílias cadastradas, 186 já saíram.
Daniel e Leidivania, moradores da comunidade, dizem manter, de todo modo, a confiança no governo federal. “Com a União falando, a gente acredita, porque é o povo do Lula”, afirma o morador. “Eu tenho uma certeza agora que é federal, o Lula não vai deixar a gente na mão”, diz a dona de casa.

Remoção de moradores do Moinho
Localizada na região dos Campos Elísios, a favela do Moinho se espreme entre trilhos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), embaixo do Viaduto Engenheiro Orlando Murgel e na divisa com o bairro do Bom Retiro. A remoção dos moradores se insere no contexto da alegada revitalização da região central pelo governador: a comunidade está a menos de um quilômetro da Praça Princesa Isabel, para onde Tarcísio pretende levar parte da sede administrativa do governo.
A gestão estadual também vincula o reassentamento da comunidade ao combate ao Primeiro Comando da Capital (PCC), facção à qual a favela estaria submetida e que faria dela base para o tráfico de drogas na região chamada de Cracolândia — cena aberta de uso de drogas.
A gestão Tarcísio diz que os moradores vivem sob risco e em condições insalubres. Além disso, ela pleiteia a cessão do terreno pela União, onde prevê construir um parque e uma estação de trem.