Em um país onde a palavra do policial basta para condenar uma pessoa, mesmo com imagens das câmeras corporais a responsabilização nos casos de morte cometidas por PMs fica muitas vezes a cargo da própria corporação

Nos últimos dias, acompanhamos dois casos de violência em São Paulo em que as imagens escancaram os abusos cometidos por policiais. Um homem morto dentro de casa na frente de sua mãe na Vila Andrade, na zona sul da capital paulista. Os PMs que mataram Nathanael Venâncio usavam câmeras corporais, mas só foram afastados quando imagens chegaram à imprensa. No outro caso, PMs foram filmados espancando um homem caído no chão.
Quando casos assim acontecem sempre surge a pergunta: e quantos são os casos de violência policial que não chegam ao público? Aqueles que ficam no esquecimento de arquivos apagados das câmeras ou nos quais policiais usaram de estratagemas para burlar o sistema de gravação, conforme reportagem de Luís Adorno do UOL, pontuou. Ou mesmo os que ficam só nos olhos de testemunhas e nunca foram registrados?
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Não fosse uma imagem gravada por um cidadão, nunca teríamos visto uma série de violações, como abordagens violentas a menores, ameaças e mortes. Algumas delas foram praticadas por PMs com câmeras cujas imagens nunca vimos ou veremos. Outros só foram trazidos à luz por imagens de vizinhos, amigos e familiares que reconhecem nas gravações uma forma de garantir algum constrangimento à PM ou até mesmo à justiça.
As imagens das câmeras precisam ser solicitadas pelo delegado do caso ao longo do inquérito, o que torna sua revisão burocrática e pouco transparente. Afinal, quem acompanha fora da esfera policial o que acontece nas imagens? O recente acordo do STF com o Estado de São Paulo estabelece que os superiores hierárquicos (ou seja, outros PMs) façam a revisão aleatória das imagens de forma constante com o acompanhamento do Ministério Público, que tem como uma das funções constitucionais o controle externo das polícias — o que pouco vemos acontecendo de forma efetiva.
Um estudo recente da FGV aponta que a Justiça de São Paulo arquiva casos de mortes cometidas por policiais sem sequer haver perícia e, sobretudo, sem objeção alguma do MP. Como destacamos na reportagem sobre o estudo, “o desfecho comum desses processos é o arquivamento a pedido do MP-SP, que, em geral, não oferece objeção a inquéritos policiais — mesmo quando fundados em alegações genéricas e sem sustentação pericial”. Será que essa atitude passiva do MP mudará com o acompanhamento das imagens?
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Em um país onde a palavra do policial basta para condenar uma pessoa, o mesmo se aplica para a responsabilização de casos de morte cometidas por PMs. É todo um sistema que entrega o julgamento logo na mão de quem está envolvido no caso. Um sistema que parece preguiçoso em demasia para cumprir seu papel de investigação.
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