No dia em que se completa 24 anos do episódio, Francys Lins classifica como “uma das maiores injustiças do Brasil” a decisão de três desembargadores
Há exatos 24 anos, 111 presos foram mortos no Pavilhão 9 do Carandiru, o maior complexo prisional já existente na América Latina, em ação da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Naquele dia 2 de outubro, o sangue escorria pelas celas, corredores e escadarias, no episódio considerado por diversas entidades como a principal violação dos direitos humanos já ocorrida na história democrática do Estado. Francys Lins cumpria pena na Casa de Detenção. Sobreviveu aos disparos de metralhadoras, como relembra.
“A polícia, a Tropa de Choque, entrou no Pavilhão dando rajadas de metralhadoras. Eles gritavam ‘O Choque chegou! Vocês pediram, o Fleury (Luiz Antônio Fleury Filho, governador de São Paulo à época) mandou’”, puxa da memória Lins, que tinha 23 anos na invasão, ocorrida após o princípio de rebelião. Presos brigaram por volta de 13h30 e, potencializada pela superlotação do local, a revolta se expandiu, renderam carcereiros e dominaram o prédio. Depois, com a situação fora de controle, a PM agiu.
Para o sobrevivente, este já não é mais um dia estranho no ano. Garante ter superado graças às sessões de psicoterapia que fez depois de liberto. “Todos os médicos analisaram minha vida e não ficou nenhuma sequela. Sinto indiferença nesse dia, é mais um”, conta, comentando sobre um rapaz transferido do 10º DP (Penha) dias antes sem ter sido condenado e que morreu no Massacre. “Ele poderia ter sido absolvido. Foi condenado a pena de morte pelos policiais”. Hoje, porém, o dia será diferente por uma decisão da Justiça.
Francys Lins, ao centro, hoje é pastor e professor doutorado em Teologia (Foto: Reprodução/Facebook)
Um novo capítulo da história do Massacre foi escrita nessa semana. Os desembargadores Ivan Sartori, Camilo Léllis e Edison Brandão, da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), determinaram a anulação dos julgamentos de 73 policiais militares e do falecido Coronel Ubiratan Guimarães envolvidos na operação no dia 2 de outubro de 1992. As penas variavam de 48 a 624 anos de prisão, definidas em cinco júris populares realizados entre 2013 e 2014. O trio classificou a ação dos agentes do estado como “legítima defesa”, citando que os detentos “que entregaram suas armas saíram ilesos”.
Apesar de o Ministério Público declarar que recorrerá da decisão no Tribunal de Justiça, o sentimento é de injustiça para quem viveu a invasão. “Existe pena para o homem que viola o direito da sociedade, mas não para a sociedade que viola os direitos de um homem. É uma decisão injustificável. Uma das maiores injustiças o Brasil. Quando o Estado não garante a segurança dos presos, como vai proteger o cidadão?”, lamenta Francys Lins, questionando a argumentação feita pelos desembargadores.
“Se existe legitima defesa, como os presos morreram com tiro na cabeça? Nenhum preso enfrenta um policial com barra de ferro. Quando a PM invade, os presos já estão rendidos. É injustificável, não tem coerência”, diz.
![Francys Lins Carandiru](https://ponte.org/wp-content/uploads/2016/10/Francys-Lins-Carandiru.jpg)
Detido em 1987, Lins permaneceu dez anos no Carandiru. Liberto em 2000, dois anos antes da implosão parcial do Complexo, cursou bacharelado em Teologia, fez mestrado em Ciência da Religião e doutorado em Apologética Cristã. É professor de teologia em São Paulo e viaja pelo país realizando palestras cujo tema é justamente a vida no crime e as drogas. Tem como meta afastar os jovens do que um dia foi a sua rotina.
“Hoje, tenho uma vida de superação, perseverança. Todos os policiais foram absolvidos, mas e quem morreu? Sou um exemplo de superação. Os 111 presos mortos nem tiveram essa chance. Como vamos acreditar no jargão “servir e proteger” se o crime impera no país?”, critica Francys.