Famílias que ocupavam terreno na Favela da Skol, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio, desde sexta-feira (30/09) foram atacadas por PMs da UPP local, que prenderam jornalistas comunitários
Após longo período vivendo em casas de familiares ou barracos alugados com o auxílio do dinheiro do aluguel social em favelas do Complexo do Alemão, na zona norte do Rio, cerca de 200 pessoas, de um total de 565 famílias removidas em 2010 de suas casas, na localidade conhecida como Favela da Skol, decidiram reocupar o terreno e foram violentamente reprimidas pela Polícia Militar da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) do Alemão, ontem (01/10).
Quando foram removidas, seis anos atrás, as cerca de 565 famílias ouviram promessas de reassentamento, em apartamentos que seriam construídos na mesma favela. Passado todo esse tempo, entretanto, o local permanece ocupado apenas por entulhos, e as pessoas removidas, que juntavam o valor de R$ 400 do aluguel social com seus salários para pagar aluguéis de barracos no Alemão, não têm recebido o benefício em dia.
Teve início por volta das 22h de sexta-feira (30/09) a reocupação do terreno onde, outrora, as famílias moraram, em suas próprias casas. As 200 famílias ergueram barracas para se abrigarem, com o apoio de integrantes do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).
Às 11h da manhã de ontem, quando grande parte do grupo havia saído para trabalhar e restavam principalmente mulheres e crianças, policiais militares da UPP Alemão invadiram o local, atacaram os moradores com bombas de gás e spray de pimenta, e queimaram as barracas que haviam sido construídas desde a véspera.
“Puseram fogo nas barracas que as pessoas haviam improvisado para dormir. Não deixaram ninguém pegar suas coisas dentro das barracas, teve gente que perdeu documentos, eles jogaram as coisas na fogueira”, diz uma moradora.
Depois que os PMs se retiraram, e aqueles que haviam saído da ocupação horas antes retornaram, o grupo chegou a erguer novas barracas. “Muitos grupos estavam nos ajudando. É difícil começar do zero”, diz Camila, com tristeza. Mas os policiais militares retornaram por volta das 16h e houve mais violência, desta vez com uso de balas de borracha. “Quebraram tudo. Sem diálogo, meteram bala de borracha em geral. Muitas senhoras com mais de 65 anos, crianças. Não nos deram a chance de nos defender”, afirma Camila.
Várias pessoas ficaram feridas, entre moradores e integrantes do MTST. “O dia de ontem jamais será esquecido. Foi de muita dor. Mas também motivador. Somos famílias, trabalhadores. Pagamos nossos impostos. Tínhamos nossas casas. Não estamos pedindo favor. É nosso direito. A luta continua“, encerra Camila. A ocupação foi desfeita.
“Não cabe à PM promover ordens de despejo”, diz juiz
O coordenador nacional do MTST, Guilherme Boulos, criticou a violência policial. “É lamentável a atuação da Polícia Militar da UPP do Alemão, que, sem qualquer ordem judicial, entrou no terreno, agrediu, atirou, feriu as pessoas sem nenhuma justificativa. É inadmissível esse despreparo da polícia”, afirmou.
O episódio também foi alvo de críticas do desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e cientista político João Batista Damasceno. “Quem cumpre decisão judicial de remoção são oficiais de justiça. A polícia apenas dá apoio ao oficial de justiça, se solicitada. Não cabe à polícia promover ordens de despejo. Se não havia ordem judicial nem oficial de justiça cumprindo ordem judicial, houve abuso de autoridade”, enfatizou o juiz.
Jornalistas foram detidos durante a remoção
A truculência da PM contra os ocupantes do terreno foi registrada em vídeos divulgados nas redes sociais pelo jornal comunitário Voz da Comunidade e pelo ativista do Coletivo Papo Reto, Raull Santiago. Os midiativistas Rene Silva, Hector Santos e Renato Moura foram presos pela PM enquanto faziam os registros e levados para a 45ª Delegacia de Polícia, no Alemão, e somente foram liberados horas depois.
Um vídeo de transmissão em tempo real na página do jornal comunitário no Facebook mostra o momento em que um agente se aproxima de Rene e ordena que ele se retire: “aguarda ali fora, por favor”, enquanto empurra com o corpo o jovem, que, em vão, repete “sou do jornal Voz da Comunidade”. O policial continua repetindo “aguarda ali fora”, o jovem diz que não vai e o policial diz “é claro que vai, eu tô determinando você, pode aguardar ali fora”.
Segundos depois, a transmissão é interrompida e as prisões, denunciadas pelo ativista Raull Santiago. Em entrevista ao RJTV, Rene afirmou que policiais lançaram spray de pimenta contra ele enquanto se encontrava algemado.
De acordo com João Batista Damasceno, “eles tinham todo o direito de fazer os registros” e “o direito de ir e vir garantido pela Constituição compreende também o direito de ficar”, de modo que houve abuso por parte dos policiais, que praticaram “constrangimento ilegal”. “O crime de desacato é expressão da estrutura autoritária do Estado. Por trás de toda acusação de desacato, se esconde um abuso de autoridade”, afirmou o juiz.
Outro lado
Segundo a Polícia Militar, a instituição foi acionada por meio do telefone 190 “para averiguar uma situação na qual haveria aglomeração de pessoas em determinado ponto da Avenida Itaoca, no bairro de Inhaúma. No local, verificou-se iminência de ocorrer crime de esbulho possessório” e “os policiais militares estabeleceram diálogo com um dos líderes do grupo que informou que esbulhariam aquele local pelo fato dos integrantes do grupo terem parado de receber o benefício conhecido como ‘aluguel social’ até então destinado a eles”. A instituição também negou ter atuado com violência: “após rápida negociação, as pessoas se retiraram sem a necessidade de uso progressivo da força e ou armamento não letal”, afirmou, em nota.
Sobre a detenção dos midiativistas, a Polícia Militar afirma que os jovens foram conduzidas à 45ª DP (Alemão) “por desacato e desobediência”, e a Polícia Civil informou que “os três responderão pelo crime de desobediência e serão investigados pelo crime de esbulho possessório”. Eles foram liberados após assinarem termo circunstanciado.