Moradores relatam que agentes do Batalhão de Choque, do Bope e da UPP local têm invadido casas de moradores sem mandado e realizado abordagens violentas, incluindo espancamentos
Moradores da comunidade Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, têm vivido em tensão constante nos últimos dias. Eles relatam que policiais militares do Batalhão de Choque, do Bope (Batalhão de Operações Especiais) e da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) local têm invadido casas de moradores sem mandado, aberto portas com chave micha – utilizada para arrombar fechaduras – e realizado abordagens violentas.
Na noite da última segunda-feira (31/10), Moisés Mendes de Santana, de 20 anos, foi morto por policiais. A ocorrência foi registrada pela Polícia Civil como “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”, mas moradores afirmam que o jovem foi assassinado a facadas e arrastado por uma escadaria da comunidade, onde ficaram manchas de sangue. Seu boné foi encontrado no chão, sujo.
Testemunhas que preferem não se identificar por medo de represálias relatam que ouviram o rapaz gritando de dor repetidas vezes e sendo arrastado pelos degraus. “Eles puseram um carro na parte de baixo e outro na parte de cima da escada, não deixaram ninguém passar, falando ‘volta, volta’, e acabaram de matar ele no beco. Não teve barulho de tiro”, diz um morador. Moisés foi enterrado nessa quinta-feira (03/11) no Cemitério São João Batista, em Botafogo, também na Zona Sul do Rio.
Casas invadidas
Na quarta-feira de manhã (02/11), uma mulher levou os filhos à escola. Na volta, encontrou a porta de sua pequena loja aberta. Como havia uma chave micha presa na fechadura, teve de trocá-la. “A gente, que não tem nada a ver com isso, é quem está pagando o pato”, diz ela, referindo-se aos conflitos de policiais com traficantes e ao fato de que, no último sábado (29/10), um policial da UPP foi baleado na comunidade. “Estão ameaçando muito, dizendo que se pegarem alguém com qualquer coisa é pra matar, que eles estão com sede de vingança”, conta.
Segundo ela, os moradores não têm conseguido circular normalmente pela comunidade, que está dominada pelo medo. “Eles estão botando o terror na comunidade. A gente não pode mais ficar livre com as crianças brincando, que eles passam cheios de marra, xingam, não dão boa tarde. Não respeitam a gente”, relata. “Eles têm que vir aqui pra fazer o trabalho deles, mas não pra esculachar os moradores. A gente não tem culpa, mas acaba perdendo nosso direito de cidadão, porque eles gostam de abusar do poder. A gente sabe da lei, mas a lei pra eles não serve de nada, porque se a gente falar que vai dar queixa, eles ameaçam. Eles acham que quem mora na comunidade é lixo. Mas aqui tem famílias de bem, que trabalham. A gente só quer paz, mais nada”, indigna-se.
No decorrer desta semana, duas mulheres se depararam com policiais dentro de suas casas enquanto vestiam apenas roupas íntimas. Uma jovem relata que as portas estavam trancadas e ela estava deitada em sua cama, na manhã de segunda-feira, quando ouviu o ruído de uma porta sendo aberta. Eram três policiais do Bope. “Quando eu abri a porta de casa, eles já estavam dentro de um vão que separa minha casa da casa da vizinha de baixo, com o fuzil apontado para a minha cabeça, praticamente. Aí eles pediram para entrar, eu deixei, eles fizeram perguntas, olharam embaixo da cama e saíram”, conta.
Os policiais ficaram cerca de 15 minutos na casa, um no interior e dois do lado de fora, segundo ela. “A sorte foi que eu coloquei um short rápido. Me senti muito intimidada. Porque é um lugar onde a gente quer ficar à vontade. Eles podiam ter ao menos batido na porta antes de entrar”, completa.
Outra moradora relata que o portão que dá acesso à casa de sua família e a outras residências também foi aberto com chave micha por agentes do Choque, que revistaram as casas dos vizinhos. “Eles bateram, minha filha de 14 anos abriu um basculante e disse que estava sozinha em casa, eles disseram ‘abre que é a polícia’. Minha filha ficou nervosa, falou alto e eles debocharam dela, chamaram ela de escandalosa. Se tem uma menor dentro de casa, eles podem chamar um vizinho, pedir pra chamar a gente, que a gente vai abrir. Não tem necessidade de mexer com a cabeça da criança”, conta. Grávida, ela afirma estar com medo, principalmente de deixar as filhas adolescentes em casa sozinhas, já que o marido também trabalha o dia todo.
“Meu cachorro ficou tão nervoso que não pode mais escutar um barulho na escada… fica latindo, estressado. Essas coisas mexem com a cabeça das pessoas. A partir do momento em que eles fazem o trabalho deles direito, batem na porta e a gente abre, não tem problema de entrar, mas fazer isso com criança. É isso que eles fazem com a gente”, diz, a voz embargada que termina em um choro trêmulo, de medo.
Um homem também relata ter encontrado sua loja aberta, com o cadeado da porta quebrado. “Eu fui limpar o bar e quando cheguei a porta estava arrebentada, só encostada. Aí um vizinho falou que eles arrebentaram a minha e a porta de uma outra vizinha. Arrancaram o cadeado”, conta ele, que tem 66 anos de idade. “Eu não sei por quê. Não tenho nada com tráfico, com nada. Não buliram em nada, mas eu não gostei, porque ainda tive que gastar pra pôr outro cadeado. Acho isso errado. Eles podem andar, fazer o trabalho deles, mas tinham que respeitar morador, né? É invasão”, critica.
Jovens espancados
Três jovens conversavam na porta de um bar na comunidade, no início da tarde de terça-feira (1º/11), quando foram abordados por cerca de oito agentes do Batalhão de Choque, segundo testemunhas. Depois de pedirem suas carteiras de identidade, os policiais militares devolveram a carteira de trabalho de um dos rapazes e voltaram sua atenção para outro, afirmando que ele estava mentindo ao se dizer trabalhador. O jovem, então, disse que, se fosse preciso, poderia levar os agentes ao local onde trabalha, e que estava de folga.
Mas eles não quiseram: com truculência, ordenaram que entrassem no estabelecimento e desferiram os primeiros golpes contra dois dos rapazes, que em seguida foram levados para a sobreloja do bar. Lá, de acordo com relatos, “bateram muito nos dois” com fios e um taco de sinuca, além de terem feito uso de spray de pimenta diretamente nos olhos.
“Paulada na mão, fio nas costas, spray de pimenta toda hora. Deram um chute na cara do moleque, pisando no pescoço, sufocando com spray de pimenta pra ninguém ficar argumentando nada”, relata um deles. Uma moradora tentou dizer aos policiais que os jovens eram apenas moradores e trabalhadores, em vão. Os vizinhos foram obrigados pelos agentes a entrar em suas casas, cujos portões passaram a ser vigiados por policiais. O dono do bar, com medo, ficou inerte, sem saber o que fazer diante da situação. Depois de surrar os dois, os agentes os fotografaram para marcar seus rostos, ameaçando: “se tiver alguma queixa contra mim vou te pegar”.
“Eles não podiam fazer isso. O bar é uma coisa de família, não é lugar disso. Não dava nem pra ajudar os garotos, que eles [policiais] já foram expulsando, jogando as pessoas dentro de casa, mandando fechar o portão e ficar lá dentro, porque eles queriam espancar os garotos”, conta uma moradora. “Nenhum deles é envolvido no tráfico. São pessoas normais, trabalhadores, igual eu sou trabalhadora. E eu, nem curtir minhas férias posso, porque os bares estão todos fechados, você quer ir na casa de um vizinho, vai sair, e eles já estão ali mandando você voltar pra dentro [de casa]. A gente tem que viver como prisioneiro. Isso não é vida”, entristece-se ela, que chorou ao saber o que aconteceu aos rapazes. As pessoas, segundo ela, estão vivendo com medo na favela.
A revolta com a situação é grande e revela uma questão social da maior gravidade. “O que nós sentimos sendo esculachados desse jeito? Os caras estão aqui fazendo o trabalho deles, pra reprimir o tráfico. Nós somos moradores do morro. Somos homens, como eles. Dessa forma que eles estão agindo, eles influenciam mal a gente, influenciam a entrar pro tráfico. Porque se nós trabalhamos, nós apanhamos. Se é pra apanhar, é melhor estar errado, porque eu estando certo, sendo trabalhador, apanho como se tivesse errado. Eles chegam aqui impondo a lei deles dentro do morro, fazem o que querem e não estão nem aí. Por que ele falou que se chegasse uma denúncia até ele ele ia me pegar? Porque a denúncia só chega até ele, não acontece nada. Ele volta pra bater, fazer o que quiser”, questiona um dos jovens.
Outro lado
Questionada pela reportagem sobre as circunstâncias da morte de Moisés Mendes e sobre as queixas de invasões de residências na favela, a assessoria de imprensa das UPPs respondeu com uma pergunta sobre qual seria a fonte da informação de que o jovem foi morto por policiais a facadas.
Já a Polícia Civil respondeu, em nota, o seguinte: “um procedimento foi instaurado na 13ª Delegacia de Polícia (Ipanema) para investigar a morte de Moisés Mendes de Santana, de 20 anos de idade, após confronto ocorrido na Comunidade Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, na noite de domingo, dia 31 de outubro. Segundo informações preliminares, criminosos atiraram contra policiais militares que revidaram o ataque. Moisés foi socorrido no Hospital Municipal Miguel Couto, mas não resistiu aos ferimentos e morreu. Diligências estão em andamento para esclarecer todas as circunstâncias do fato. A ocorrência foi registrada como homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”.
[…] Fonte: PM impõe medo na comunidade Pavão-Pavãozinho, no Rio | Ponte Jornalismo […]