Tema de exposição, Djan diz que se mantém fiel ao pixo: “Ser criminoso perante a lei faz parte da nossa legitimação como artista”. E manda um recado para o prefeito de São Paulo, João Doria: “ele não vai aguentar com o pixo”
Você sabe que está numa exposição de arte diferente das outras quando o garçom que passa servindo os canapés, por ser da periferia, sabe falar melhor sobre o que está exposto nas paredes do que a maioria dos convidados bacanas que estão por lá olhando as obras. Vi isso acontecer na festa de abertura da exposição Em Nome do Pixo, do artista Djan Ivson, 32 anos, o Cripta Djan, um dos nomes mais conhecidos do cenário das pichações de São Paulo.
A exposição, que vai até 27 de novembro no espaço Humanar, um escritório de arte na Rua Brigadeiro Galvão, 996, Santa Cecília, região central da capital, leva a linguagem do pixo para o espaço tradicional das galerias de arte sem esquecer como as pichações carregam nas tintas da transgressão. Logo na entrada, ao lado de recortes de jornais sobre a carreira de Djan, estão expostos trechos de processos judiciais a que o pichador já respondeu por exercer sua arte nos muros da cidade.
O marchand João Correia, proprietário da Humanar, conta que precisou sair do Brasil para mudar seu olhar a respeito das pichações. “Morei 12 anos fora e ouvia muito que o pixo era uma das coisas mais interessantes que estavam acontecendo no Brasil. Quando voltei para cá, em 2012, comecei a olhar as paredes e ver que o que as pessoas chamavam de vandalismo ou delinquência tinha força expressiva e originalidade”, afirma. Em busca de entender melhor o universo da pichação, chegou a Djan.
Nessa entrevista, o pichador conta como é caminhar na fronteira entre arte e crime e manda um recado ao prefeito eleito João Doria (PSDB), que, durante a campanha eleitoral, ameaçou usar a Guarda Civil Metropolitana para acabar com os pichadores de São Paulo. “Somos um exército”, avisa.
Ponte – Na exposição, logo na entrada, tem páginas dos processos que você já respondeu. Qual é o tamanho da sua “capivara”?
Cripta Djan – Em vista do meu rolê, eu tenho poucos processos. Acho que respondi uns sete quando era de menor e uns dez de maior. Nem chegou a 20 processos. Tem amigo meu que tem mais de 30 e é bem mais novo que eu. Já fiz vários tipos de transação penal. É legal assumir isso. Minha exposição vai estar sempre transitando com essa discussão de crime e arte, colocando em xeque essas fronteiras. Você está vindo numa exposição de arte, mas as consequências disso já estão na entrada.
O que mais tem na exposição?
Djan – Tem os ensaios fotográficos de algumas ações que fiz na rua com alguns fotógrafos, até conhecidos da mídia. Tem João Wainer, Maurício Lima, do “New York Times”, João Brito Junior, que já foi da Folha, e alguns menos conhecidos, mas que têm ensaios relevantes. Tem também um acervo de fotos que eu faço das minhas intervenções na rua. Tem a série de obras intitultada Criptografia Urbana. Essa série específica se chama Manuscrito Periférico, em que faço a transcrição de textos que eu crio para as telas. Escolhi para essa exposição o texto A arte de vandalizar. Ali, eu discorro sobre o conceito de arte e vandalismo.
É uma arte que não veio para apaziguar, veio para rachar, mesmo, para questionar. Esse é o papel do pixo.
O pixo é muito ligado à ideia de vandalismo como arte?
Djan – É uma arte que não veio para apaziguar, veio para rachar, mesmo, para questionar. Esse é o papel do pixo. Na realidade, a gente não tem nenhum estigma de se assumir como artista vândalo. Até porque, se a gente for analisar o conceito de vandalismo, é uma origem política, de um povo que lutava contra o Império Romano e que destruíram símbolos. Acho que isso tem muito a ver com a pichação nesse sentido, de destruir simbolicamente o patrimônio da burguesia. E aí também entra a questão artística porque todo pixo tem uma elaboração estética e um processo criativo, não é só rabisco. Por isso acho que a melhor definição para o pixo seria “a arte de vandalizar”.
E como fica o pixo quando entra numa exposição?
Djan – Aqui não é o pixo que está entrando. Aqui é o trabalho de um artista que é oriundo do pixo e que está trabalhando apenas com a linguagem do pixo. Meu pixo propriamente dito eu só faço na rua.
Aqui você usa telas.
Djan – Aqui a gente está trabalhando com suporte tradicional para mostrar que o pichador também tem condição de se apresentar em outros campos além da rua. O pichador é acusado de ser um delinquente, um marginal, que não tem um trabalho com qualidade artística. A ideia dessa exposição é provar o contrário: mostrar para a sociedade que o pichador, além de ocupar a rua, tem como participar de Bienal, de fazer uma exposição individual, de ocupar esses espaços institucionais também.
Como foram suas participações em Bienais?
Djan – Foram sempre polêmicas. Sempre acabaram com polícia. Na primeira vez que participei de Bienal, fui meio como intruso, ocupando a Bienal de Artes de 2008, na famosa invasão da Bienal do Vazio. Na realidade a gente só se encaixou no esquema curatorial, porque o curador falou que a Bienal estava aberta para intervenções urbanas. A gente foi lá, ocupou o espaço e fomos reprimidos. Depois voltamos como convidados.
A gente descobriu que a transgressão só vale se for de mentira. Quando ela é de verdade, eles chamam a polícia.
A exposição também mostra um vídeo da sua participação na Bienal de Berlim [em 2012]
A Bienal em Berlim acabou em polícia também. Nosso papel, quando participa de um evento institucional, é testar os limites desse discurso da arte contemporânea, principalmente aqueles que tentam sustentar um discurso de transgressão. A gente descobriu que a transgressão só vale se for de mentira. Quando ela é de verdade, eles chamam a polícia.
Em Berlim, deixaram tapumes delimitados para vocês pixarem.
Djan – É, fomos chamados para fazer uma apresentação prática dentro de um congresso de desenho. A gente alertou os curadores: “Vocês estão preparados? É isso mesmo, vocês querem uma demonstração prática? Olha, isso inclui transgressão”. Eles disseram que tudo bem. Na hora em que começou a acontecer, eles chamaram a polícia.
Os próprios curadores chamaram a polícia?
Djan – Os próprios. Isso que foi muito louco. A gente colocou em xeque toda uma bienal. A gente sempre faz isso. Quando a gente invadiu a Bienal em São Paulo, quando teve a invasão da Choque Cultural, foi sempre baseado no discurso do curador. A gente realmente pega o projeto curatorial, incorpora e leva ao pé da letra, mais do que o próprio curador possa imaginar. Nosso papel no campo institucional é fazer isso. No caso, aqui [a exposição “Em Nome do Pixo”] é uma exposição individual, que eu mesmo estou financiando. Não trabalho com galeria, não trabalho com nenhuma marca. Estou trabalhando há dois anos com essa série de obras, criando meu próprio mercado, mostrando que é possível ter uma representação nesse campo sem ser refém de ninguém. Esse trabalho na realidade é mostrar a ascensão do periférico. Mostrar que é possível pessoas da periferia ocuparem espaços que foram negligenciados para eles. Porque, se você vai analisar a história dos artistas tradicionais, eles estudaram em escolas de renome, vêm de famílias de artistas. Sempre me incomodou, quando comecei a me introduzir nesse campo, não ter representação de pessoas da periferia. Hoje o meu trabalho é tentar forçar essa porta. Já que não abrem a porta para nós, vamos criar nosso próprio caminho.
Como você vê o papel do grafite nessa história toda?
Djan – Acho que o grafite foi muito fácil de ser cooptado pelo Estado, pelo poder privado. Virou uma coisa decorativa. A gente, do pixo, já tem esse exemplo dos erros que os grafiteiros cometeram quando fizeram essa transição nesse campo institucional. O legal do nosso trabalho é justamente isso: a gente não quer trabalhar decorando fachada de ninguém. A rua é nosso palco de legitimação conceitual. Se a gente chegar aqui, é por mérito do que a gente fez na rua, mas com currículo de transgressor. Não é só um cara que domina a técnica, que pinta bonito. Não. Nós estamos tentando apontar para outro caminho. O reconhecimento da transgressão em primeiro lugar, tá ligado? O que vem depois é consequência disso. Mas a principal legitimação do pixador nesse campo é a rua. A gente nunca vai poder se afastar da rua. A gente está transitando aqui, mas continua na rua pichando, correndo risco, respondendo processos criminais. Até o fato de ser criminoso perante a lei faz parte da nossa legitimação como artista.
Se agora tem um prefeito reacionário, a gente vai responder na mesma altura
Se agisse dentro da lei, não seria um pichador?
Djan – A pichação nasceu justamente porque o muro foi negado primeiro. Ser criminoso é uma condição que a sociedade burguesa criou para a gente. Mas a gente não se vê como criminoso. A gente se vê como pessoas libertárias que estão reivindicando o uso de uma cidade que foi negado para nós, de uma cidade que está cada vez mais privada, cada vez mais homogênea, criando espaços de separação, criando fronteiras entre pessoas. Acho que o pixo é a melhor resposta para isso. Porque vão lá, constroem um muro para dividir, a gente vai lá e picha esse muro. A gente acaba rachando e aproximando de novo. A gente está criando uma aproximação de uma certa forma, não deixa de ser um diálogo, até com quem não aceita.
O prefeito eleito de São Paulo, João Doria, vem usando um discurso muito duro contra a pichação. O que você espera dos próximos anos na cidade por conta disso?
Djan – Discurso duro de prefeito nunca nos assustou. Já teve várias campanhas contra o pixo, várias leis, e o pixo nunca deixou de ter força por causa disso. Para nós é mais combustível ainda. Se agora tem um prefeito reacionário, a gente vai responder na mesma altura, tá ligado? Ele pode se preparar porque ele não vai aguentar com nós. Esse João Doria está apenas fazendo um discurso midiático, mas ele não vai aguentar com o pixo. Nós somos um exército.
[…] Fonte: Djan, pichador: “Discurso duro de prefeito nunca nos assustou” | Ponte Jornalismo […]