Empresa gestora afirmou não exercer poder de polícia no interior do Compaj, mas tal atribuição está prevista no contrato assinado com o governo do Amazonas e foi observada durante visitas de defensores de direitos humanos ao local
O assassinato de 56 pessoas no Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), por causa de uma disputa entre as facções criminosas FDN (Família do Norte) e PCC (Primeiro Comando da Capital), poderia ter sido evitado caso alertas sobre tal risco tivessem sido levados em conta. Um deles veio de peritas do MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), órgão ligado ao Ministério da Justiça, mas de funcionamento autônomo. Elas visitaram a unidade, além de outros três presídios da capital amazonense, em dezembro de 2015. Um ano antes do massacre e um ano e meio depois do início da vigência do contrato de terceirização.
“Entrevistamos diversas pessoas, entre presos e funcionários, que confirmaram que suas vidas estavam em risco e a iminência de que um massacre pudesse acontecer”, revela Catarina Pedroso, uma das peritas que esteve no local. Segundo ela, a visita do MNPCT foi motivada “dentre outras razões, pelo alerta de diversas organizações, como o Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU, sobre a gravidade da situação”.
Na época, o Compaj já estava sob gestão da empresa Umanizzare desde junho de 2014. “Observamos condições de superlotação, que são, a meu ver, um dos aspectos centrais do problema, pois aumenta a tensão entre as pessoas presas e degrada ainda mais as condições de encarceramento. Havia diversas pessoas que estavam alojadas de maneira improvisada em locais que colocavam suas vidas em risco. Além disso, observamos também pessoas torturadas por agentes das unidades através de agressão física, sem que houvesse qualquer apuração e responsabilização dos envolvidos”, conta. Ela lembra, ainda, que presos mantidos isolados nos “seguros”, por terem cometido crimes não tolerados pelos demais detentos, ou por serem policiais militares, estavam em locais improvisados, com sua segurança ameaçada.
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Segundo Pedroso, nas unidades terceirizadas de Manaus visitadas pelas peritas do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, “a situação em relação a atendimentos de saúde, psicossociais e jurídicos era bastante grave”. A assistência jurídica era realizada por advogados contratados pela própria empresa, colocando em risco, de acordo com a perita, a possibilidade de que denúncias de violações fossem levadas adiante.
Além do Compaj e do CDPM (Centro de Detenção Provisória Masculino), geridos pela Umanizzare, os outros presídios avaliados foram a PFM (Penitenciária Feminina de Manaus), administrada pela RH Multi Serviços Administrativos, e a CPDRVP (Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa).
Outro problema resultado da terceirização é a falta de capacitação adequada do funcionário que tem de desempenhar o papel de agente penitenciário. De acordo com Catarina Pedroso, a remuneração, na época da visita às unidades sob gestão da Umanizzare em Manaus, incluindo os valores adicionais, era em torno de R$ 1,7 mil. “Os agentes trabalhavam sob uma dupla ameaça: a de serem agredidos pelos presos, inclusive fora do horário de trabalho, e a de perderem o emprego, pois havia uma grande rotatividade de funcionários. Assim, estão dadas as condições para que a violência e a tortura se reproduzam dentro do ambiente prisional”.
“As unidades privatizadas apresentavam, portanto, condições muito parecidas com unidades geridas pelo próprio Estado, com o agravante de que as condições de trabalho expõem os funcionários e favorecem a ocorrência de violações”, conclui.
De fato, em dezembro de 2016, agentes penitenciários contratados pela Umanizzare alertavam para os baixos salários e as más condições de trabalho. À imprensa, Elizeu Silva Pereira, presidente do Sindicato dos Agentes Terceirizados do Sistema Prisional do Estado do Amazonas (SATSPEAM), afirmou que “ao longo de 11 anos, a categoria tem os direitos trabalhistas desrespeitados por contratantes”.
O MNPCT divulgou seu relatório sobre as visitas às unidades prisionais de Manaus em janeiro de 2016. “Sobre o Compaj, buscamos apontar a gravidade da situação encontrada, bem como a iminência de que mortes pudessem ocorrer”, explica Catarina Pedroso.
Além da descrição da situação e dos alertas sobre a iminente ocorrência de mortes, o documento ressalta que “o Estado não exerce efetivamente sua função primária de monopólio legítimo da força nem realiza efetivamente a sua tarefa de supervisão de execução penal”. Entre as recomendações ao governo amazonense, estava a necessidade de se elaborar um plano de redução da população carcerária. “No entanto, não obtivemos respostas do Estado a respeito.”
Terceirização
Em nota divulgada à imprensa por ocasião do massacre no Compaj, a Umanizzare afirmou que só presta serviços de limpeza, assistência social e jurídica dos presos, além de vigilância eletrônica. As atividades de comando, disciplina, uso de força, segurança e vigilância armada dos detentos seriam de responsabilidade do governo amazonense. De acordo com a Lei de Execução Penal, as atribuições que configuram poder de polícia não podem ser delegadas pelo Estado a empresas.
No entanto, no contrato assinado entre a empresa e a Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (SEJUS/AM) – em 31 de março de 2015, a titular do acordo, por parte do governo, passou a ser a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP/AM) –, determina-se que “os serviços devem ser prestados de acordo com as especificações constantes do Projeto Básico – que passa a integrar o presente contrato como se nele estivesse transcrito”.
O item 3.2 do projeto citado é explícito: “É da competência da Contratada a manutenção dos serviços de manejo interno, para a custódia e disciplina dos internos na Unidade Prisional, bem como o cumprimento dos Alvarás de Soltura mediante determinação do Diretor da Unidade”.
Ainda segundo o documento, a empresa deve realizar os serviços de revistas de internos, funcionários e visitas, “o exercício da guarda e manejo interna do estabelecimento penitenciário, mantendo a ordem e a disciplina, sempre sob a fiscalização da SEJUS”, e “o manejo e a manutenção da ordem durante a prestação de serviços, exercícios, aulas, jogos esportivos e demais atividades correlatas”, entre outras atribuições.
Além disso, está previsto também que funcionários da empresa contratada integrem o Conselho Disciplinar, que tem entre suas funções a “deliberação e proposição sobre a aplicação de sanções disciplinares”.
Segundo Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, que visitou o Compaj, os funcionários terceirizados pela Umanizzare de fato exercem funções de segurança e disciplina: realizam o controle interno, são responsáveis pela movimentação interna dos presos e exercem vigilância sobre seu comportamento. “Se há um agente do Estado validando as determinações desses funcionários, é apenas formalmente. Em qualquer unidade prisional, seja privatizada ou estatal, quem exerce o poder de polícia é quem está cotidianamente nos corredores e pavilhões, e em contato direto com a população prisional”, diz.
Além do Compaj, a Umanizzare gere, em Manaus, o CDPF (Centro de Detenção Provisória Feminino), o CDPM (Centro de Detenção Provisória Masculino), o Ipat (Instituto Penal Antônio Trindade), a UPI (Unidade Prisional de Itacoatiara) e a UPP (Unidade Prisional do Puraquequara).
Procuradas pela reportagem, a Umanizzare e a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária do Amazonas (SEAP/AM) não haviam respondido os questionamentos até a publicação desta matéria.
* Reportagem publicada originalmente no site da Internacional de Serviços Públicos (ISP)