‘Algumas situações acontecem e no calor da emoção, algum jovem pode entender como agressão. Mas não foi o que ocorreu. Nenhum jovem teve fratura no braço, por exemplo”, explicou Guilherme Astolfi Nico, diretor regional
Um mês e meio depois de a Ponte Jornalismo denunciar maus tratos em uma das casas da Fundação Casa do Complexo Raposo Tavares, na zona oeste de São Paulo, mais uma vez uma carta escrita por um adolescente conta que na sexta-feira, 17 de março, durante o jantar, dentro do refeitório, houve uma discussão que terminou em confronto entre os jovens e os servidores.
“A gente estava no refeitório, quando os funcionários vieram, começou um bate-boca e um deles deu um soco no adolescente. Aí começou tudo, uma briga generalizada, voou cadeira para todo lado. Tinha um funcionário do meu lado, ele olhou pra mim e deu uma cadeirada na minha boca, quebrou o meu dente. Depois disso, quando tava todo mundo nos quartos, passaram por lá, um por um, fizeram ameaças e contaram que marcaram a cara de quem se envolveu para ter revide. Um lá disse que vai machucar todo mundo”, relatou João*, de 17 anos, egresso da Casa Cedro.
O jovem foi liberado no dia 21 de março, quatro dias depois da confusão, após cumprir um ano de medida socioeducativa. Pelo menos sete internos, incluindo o jovem que deu o depoimento à Ponte Jornalismo, ficaram feridos e tiveram que ser levados para atendimento externo.
A Secretaria Municipal da Saúde confirma que o rapaz foi atendido no Pronto Socorro Municipal da Lapa, na zona oeste de São Paulo. De acordo com a direção regional da Fundação Casa, pelo menos nove funcionários foram agredidos e tiveram que ser socorridos.
No dia seguinte, sábado, era dia de visita e Raquel dos Santos, mãe de João*, chegou ao Complexo Raposo Tavares e recebeu a notícia de que o filho havia perdido o dente: “Logo que cheguei, me chamaram lá dentro e me contaram o que havia acontecido. Eu fiquei revoltada. Eu acho que se esse funcionário que bateu nele estivesse na minha frente, eu pulava no cangote dele. Eu fiquei indignada, ele chorou muito e eu também”, contou Raquel, que pretende pedir indenização do Estado.
Outra mãe, que pediu para não ser identificada, também foi visitar o filho e contou que os ferimentos nos adolescentes eram visíveis: “Quando eu cheguei, tinham uns funcionários na porta com uma lista com os nomes dos meninos envolvidos. Meu filho não estava no meio, mas acabou sobrando cacetada para ele também. Ele me contou que o Choquinho entrou e aí aquela coisa, né, não tem conversa. O que passaram para nós é que tinham muitos funcionários machucados também. No pátio, percebi que tinha meninos muito machucados, com a cabeça cortada, perna e braço roxo”, relatou a mãe.
O filho dela está desde o início do ano passado na Fundação e ela afirma que situações como essa são comuns: “De uns três meses para cá, a Cedro tava bem calma, na realidade. Mas é comum ouvir que teve que ter intervenção do Choque por causa de rebelião. Eu acho bem complicada essa situação. Eles estão pagando pelo que eles fizeram. Acho que ninguém merece ser agredido, apanhar, ninguém merece ficar só de cueca no chão frio em um dia frio, como acontece no Brás [unidade para onde todo adolescente infrator é mandado quando é apreendido]. É muita humilhação”, desabafa.
Na segunda-feira, logo após a confusão, a Ponte Jornalismo teve acesso a essa carta, escrita por um jovem interno da Casa Cedro, onde as agressões aconteceram. Os nomes foram apagados para segurança dos internos. O texto foi transcrito sem correções:
Meu nome é XXXXX estou pedindo ajuda de vocês porque ouve opressão. Muitos adolescentes machucados, XXXX quebrou o dedo, XXXX quebrou os dentes, XXXX ponto na testa, na perna, XXX varios cortes na cabeça, XXX ponto na cabeça. Muitas agressões bateram em nois com os cadiados de ferro, seu cristiano, seu mauricio, seu francisco, coordenador seu ideu, seu julho, etc… machucaram nois muitos bateram na nossa cara. Ajuda nois pessoal ta dificil pra nois, eles estão quebrando nois, batendo na nossa cara, nois queremo o nosso bonde porque eles falaram que vai pegar nois dormindo e entrar um monte de funcionário e quebra nois. Nois queremos sair dessa unidade porque a diretora não ta nem aí ela passa pano fala que nois tem que apanhar na cara pra nois aprende. Não é assim como nois vamos aprender desse jeito apanhando, como nois vamos tirar a nossa medida socioeducativa.
Uma pessoa que trabalha no Complexo conta que na segunda-feira foi possível ver os adolescentes machucados. “O clima era muito pesado na segunda. Eles estavam bastante machucados, tinha mais de um com ponto na testa, o outro com dente quebrado e um garoto com suspeita de fratura de costela”, relata.
Depois disso, as atividades ficaram suspensas a semana toda na Casa Cedro. A mesma fonte, que pediu anonimato por questões de segurança, afirmou que embora o complexo englobe outras casas, existe uma cultura de silenciar sobre os problemas em cada uma das unidades. “Se você perguntar na Jatobá, por exemplo, possivelmente nem imaginam a selvageria daquela sexta-feira. É tudo muito velado”.
Funcionários teriam reagido ao ataque dos adolescentes
Segundo a direção da Fundação Casa, no dia 17 de março, houve um ato de indisciplina durante o jantar na Casa Cedro envolvendo metade dos internos – hoje o local abriga 40 meninos e 20 teriam se rebelado.
O diretor regional da Divisão Regional Metropolitana 4, Guilherme Astolfi Caetano Nico, disse que os servidores foram agredidos primeiro e tiveram que reagir. “Eles partiram para cima dos funcionários. Como o espaço é um refeitório, eles começaram a jogar as mesas e cadeiras em cima dos servidores. Aí ficou generalizado e eles precisaram usar de uma força necessária para conter o tumulto”, explicou.
Ao contrário do que João contou à Ponte Jornalismo, Nico explicou que alguns jovens se machucaram acidentalmente. O diretor regional também explicou que sempre que há situações de indisciplina como essas, há um procedimento de apuração interno, em que os jovens envolvidos são ouvidos por uma comissão multidisciplinar.
“Quando há um sentimento de injustiça, os jovens verbalizam quando estão sendo interpelados individualmente. Eles disseram que os servidores estavam certos e explicaram que tudo aconteceu, porque um dos adolescentes achou que um servidor tinha sido muito rigoroso. Eles falaram: ‘foi justo, senhor!’. Os adolescentes que começaram a agredir’. Algumas situações acontecem e no calor da emoção, algum jovem podem entender como agressão. Mas não foi o que ocorreu. Nenhum jovem teve fratura no braço, por exemplo”, explicou Guilherme Astolfi Nico.
Para o diretor, alguns adolescentes são mais rebeldes e se sentem privilegiados ao dizerem que fazem parte de determinada facção ou provocam briga propositalmente. “Alguns cometiam, no passado, atos de indisciplina para, por exemplo, ficar sem aula. Hoje, quando algum interno sofre sanção, perde direitos a algumas coisas, como jogar futebol ou ver TV, mas vai às aulas normalmente. A gente tem que descontruir essa ideia de que quem manda são eles, mas essa sanção não pode ser punitiva, precisa ser pedagógica. Nós somos garantidores dos direitos humanos”, conclui.
*João é um nome fictício para o interno egresso que concedeu entrevista à Ponte Jornalismo em concordância ao estabelecido pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)