Cama forrada com jornal, paredes mofadas e feto na privada

    Criminalização do aborto no Brasil sujeita mulheres à situação precária de clínicas clandestinas; 2 mil mulheres abortam por dia no país

    Era uma quarta-feira como qualquer outra, exceto para Leila. Naquele dia, ela entrou no consultório do doutor N. e, aos 22 anos, estava decidida a fazer um aborto. Grávida de 16 semanas, foi a uma consulta na clínica no dia anterior e o médico disse que o feto deveria ser retirado o mais rápido possível, por causa do tempo de gestação. O ginecologista a atendeu em uma sala precária, separada do consultório. A cama era forrada com jornal e Leila se manteve consciente ao longo de todo o procedimento realizado com anestesia local. Teve pavor de ter alguma infecção, caso um dos instrumentos cirúrgicos caíssem nos jornais e seguissem sendo utilizados. Isso aconteceu há 30 anos. Mas essa realidade ainda é presente em clínicas clandestinas de aborto no Brasil, sustentada por uma legislação conservadora, que muito pouco se modificou, apesar da crescente demanda de mulheres que querem colocar o assunto em pauta nas últimas décadas.

    Não há um levantamento oficial de quantas dessas clínicas existam no país, já que o aborto só é permitido por lei quando a gravidez é resultante de estupro, representa algum risco à vida da gestante ou quando o feto é anencéfalo. Porém, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o aborto clandestino é feito por mais de um milhão de mulheres anualmente em território nacional. Ou seja, duas mil mulheres abortam diariamente no Brasil, aproximadamente duas por minuto. Seja pagando até mais de um salário mínimo em consultórios ilegais ou em casa, usando remédios ou chás.

    Aos 28 anos, Paula** virou estatística. Numa clínica clandestina em um prédio comercial, que passava despercebida por quem passava pelo centro de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Lá dentro, havia câmeras de segurança na porta e vários homens sentados na recepção – a companhia de alguém era obrigatória, já que a mulher fica desorientada em função da anestesia geral. Na sala de recuperação, alguns colchões com cobertores espalhados no chão. Paula** pagou R$ 3 mil pelo aborto, feito em um local sem as condições de higiene necessárias e acabou contraindo uma infecção que precisou de tratamento ginecológico durante meses. Após o procedimento, Paula** acordou sozinha na sala e, desacompanhada, começou a andar pela clínica. Foi quando viu um feto ser aspirado do útero e jogado na privada. Uma cena que ela não deveria – e muito menos queria – ter visto, já que as mulheres não sabem o que acontece com o feto. Quando acordam, já devem estar com o antibiótico na mão e o absorvente na calcinha, prontas para irem embora.

    O abortamento ilegal constitui a quinta causa de morte materna no país, segundo relatório elaborado pelo governo brasileiro para o evento Pequim + 20, em 2015. E, segundo a OMS, isso resulta na morte de uma mulher a cada dois dias no Brasil. Para a assessora da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Ariane Leitão, a violência contra a mulher no Brasil é uma pandemia: “Morre mulher que nem morre barata. E um dos elementos que mais mata a mulher é a violência obstétrica. Dentro disso está o abortamento legal e também as tentativas de abortos ilegais. E é uma morte muitas vezes subnotificada”. E isso está, na maioria das vezes, ligado à falta de informação. No Nordeste, o número de mulheres sem instrução que fazem aborto ilegal é de 37%, enquanto o de mulheres com ensino superior completo é 5%. Já entre as mulheres negras, a porcentagem é o dobro das brancas – 3,5% e 1,7%, respectivamente -, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

    É uma prática antiga, realizada através dos mais diversos métodos, em clínicas ou pelas próprias grávidas: chás, remédios, objetos pontiagudos para perfurar o útero, como agulhas de tricô, curetagens. “As mulheres sempre fizeram. Mas elas praticam aborto quando elas precisam praticar. Elas não praticam como método contraceptivo porque ele é doloroso, não só física como psicologicamente”, afirma a militante da Marcha Mundial das Mulheres, movimento que tem como uma de suas principais pautas a luta pela legalização e descriminalização do aborto, Cláudia Prates, de 56 anos.

    Diferente de Paula, Tatiana**, de apenas 15 anos, não teve só traumas físicos e, sim, psicológicos. Em uma sexta-feira de abril, dois anos depois, também em meio ao movimento caótico do centro de Porto Alegre, ela se despediu da mãe e seguiu, acompanhada de uma desconhecida, até um prédio residencial em uma das maiores avenidas da cidade. O apartamento era velho, úmido e cheio de quartos. As paredes manchadas, como se não fossem limpas há tempos. Na sala onde a estudante foi atendida, havia alguns aparelhos, utensílios médicos e uma cama. Ao acordar da anestesia geral, olhou para o lado e viu um pote que continha o sangue resultante do procedimento. Ela teve sangramento por dois meses seguidos. Durante esse período, carregava consigo muitos receios: “Fiquei com medo de ter uma infecção generalizada e acabar morrendo. Fiquei com medo de perder o meu útero, caso o sangramento não parasse. Se ficasse mais intenso e com muita dor, tinha o risco de perder. Eu não sei até hoje se eu sou fértil ou não. Não tive nem coragem de ir ver.” Além disso, até hoje Tatiana** não consegue realizar o exame de papanicolau sem desmaiar. O procedimento, por ter a lógica e utilizar instrumentos parecidos com os da curetagem, mesmo método usado no aborto dela, faz com que ela relembre tudo o que passou. “Eu tenho que vestir aquele hobbyzinho, tem que deitar naquela cama e abrir as pernas. Eu não consigo, passo mal sempre”, conta.

    No Brasil, o aborto legal é permitido apenas em alguns casos (Crédito: Roberta Requia)

    A lei como ratificadora da desigualdade social

    Para algumas, a falta de acesso à informação sobre métodos realmente eficazes pode piorar o processo. Priscila** engravidou mesmo tomando a pílula do dia seguinte uma hora depois da relação sexual. Ela conta que seu mundo desabou no momento em que o exame de gravidez deu positivo. Por saber que não teria apoio do pai da criança e teria que cuidar dela e de tudo sozinha, resolveu abortar. Após esse momento, seus dias foram seguidos por desespero e busca por métodos eficientes. Por medo de utilizar remédios que não funcionassem, ingeriu incontáveis misturas de chás e bebidas alcoólicas, conforme ensinavam blogs que descobriu na internet. “Chegou um dia que eu tomei tanto chá, tanto álcool onde tinha que deixar as ervas de molho, que eu passei muito mal. Ia pro banheiro e fazia força achando que estava abortando. Mas eu estava só passando mal em efeito do chá. Cheguei no fundo do poço mesmo”, lembra. Sozinha e sem ajuda – uma vez que sua mãe e amigas tinham medo de conseguir algum remédio que, ao invés de abortar, à levasse a óbito – acabou indo procurar seu ginecologista. Saiu do consultório com uma resposta já conhecida: ele não a ajudaria.  Foi assim, no desespero por uma solução que, aos 23 anos, Priscila** desenvolveu depressão. Por conta da clandestinidade do que precisava fazer, começou a perder cabelo e não ter forças para sair da cama, trabalhar ou fazer tarefas básicas do seu dia-a-dia. Pensou até mesmo em suicídio.

    Após entrar em um grupo no Facebook e conseguir o contato de um médico que topou fazer o procedimento, Priscila** conseguiu o dinheiro e foi até a clínica. Ela pagou R$ 4 mil e foi atendida em um ambiente higienizado e com todo o aparato necessário. Porém, teve a oportunidade de poucas. Por isso, ela sentiu um tipo diferente de dor. “Foi tudo muito mais fácil e tranquilo. Então eu cai naquela questão de que eu tinha condições de fazer, eu tinha como arrumar o dinheiro. E se fosse uma menina que não tivesse como? Por que eu tive esse direito? É uma covardia muito grande com todas as mulheres, principalmente com quem não tem dinheiro”, desabafa.

    Avanços

    Leila abortou em 1986, Paula em 2009, Tatiana em 2011 e Priscila no final de 2016. Apesar da diferença temporal, as quatro enfrentaram a mesma realidade: uma legislação restritiva e conservadora acerca do aborto no Brasil. Uma lei que não impede que ele aconteça, mas faz com que não se fale dele com a frequência e importância que o tema carece. Além disso, tem um caráter elitista, já que mulheres pobres é que são as maiores vítimas de procedimentos inseguros e sem qualquer condição de higiene. Em 2016, relatores especiais das Nações Unidas (ONU) encaminharam um documento ao Supremo Tribunal Federal (STF), afirmando que negar o serviço do aborto é equivalente à tortura. Para que as más condições em clínicas clandestinas, a venda de remédios que não fazem efeitos, os traumas gerados em muitas – antes, durante e após o procedimento ilegal – e a morte de tantas outras parem de acontecer, alguns pequenos, porém importantes, passos foram dados. Ainda no ano passado, a primeira turma do STF, formada pelo ministro Luis Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Marco Aurélio Mello descriminalizou o aborto até o terceiro mês de gestação. Apesar da decisão ter sido especificamente para um caso que estava sendo julgado, a assessora da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, Ariane, acredita que isso gerou um grande precedente para a questão do abortamento legal no país: “Abriu caminhos para que nós possamos, um dia, definitivamente legalizar ou melhor, descriminalizar a questão do aborto”, explica.

    Além disso, as brasileiras também estão encontrando refúgio e apoio uma nas outras, principalmente no meio online. A militante feminista Cláudia  ressalta que a internet tem ajudado para que essas mulheres acessem sites e blogs de países onde o aborto não é proibido e, consequentemente, tenham um maior acesso à informação. Sites como “Socorristas en red” e o “Women on waves”, grupos no Facebook e movimentos feministas dão este tipo de suporte. Priscila**, por exemplo, está conseguindo melhorar da depressão e da dor psicológica através de grupos onde conversa com mulheres que passaram pelo menos que ela: “Eu me senti muito bem quando eu pude ajudar outras meninas a conversar sobre isso. Acho que pelo próprio fato de falar disso, de quebrar esse tabu”.

    *A Ponte Jornalismo tem uma parceria com a Editorial J, que é uma publicação on-line dos alunos do curso de Jornalismo da Famecos/PUCRS, para republicar reportagens

    **Alguns nomes foram alterados para preservar a identidade das fontes

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