Registro de ocorrência, feito duas horas após agressão que deixou Mateus Ferreira em coma, ignorou espancamento
Duas horas após o capitão da PM Augusto Sampaio de Oliveira Neto golpear com um cassetete a cabeça do estudante Mateus Ferreira da Silva, 33 anos, deixando o jovem em coma, a Polícia Militar de Goiás (PM-GO) registrou a ocorrência sem mencionar a agressão e ainda qualificou o capitão como vítima.
A Ponte Jornalismo teve acesso, com exclusividade, ao RAI (Registro de Atendimento Integrado) de Goiás, número 2968666, sistema que agrupa informações em um único registro de ocorrência da Polícia Militar, Polícia Civil, Bombeiros e demais órgãos que compõem a segurança pública do Estado.
O registro foi feito no final do protesto na sexta-feira (28/04), às 14h28min, duas horas após a agressão ao estudante, que lhe causou ferimentos graves. Ossos do nariz de Ferreira foram reconstruídos, a clavícula continua faturada e uma intervenção cirúrgica refez parte das membranas que protegem o cérebro.
Naquele dia, pelo menos 15 mil pessoas foram às ruas de Goiânia após aderirem ao chamado de lideranças sindicais em uma greve geral contra as reformas trabalhistas e previdenciárias em todo o país.
Não existe, no relato do RAI, qualquer menção sobre em que circunstância o capitão da PM, incluído entre os quatro PMs agredidos, teria sido vítima. Sem nomear os policiais, o RAI informa que “durante a ação de contenção” quatro policiais militares, denominados “pe-1, pe-2. pe-3 e pe-4 foram atingidos por pedras arremessadas provocando danos a saúde”.
Os PMs teriam sofrido lesões nas “mãos, pés, pernas”, além de “tornozelos lesionados”, “sendo necessário atendimento médico”. Uma viatura e um ônibus da Polícia Militar, ainda segundo o registro, foram danificados por pedras.
O tenente que registrou a ocorrência descreve que um grupo de 200 manifestantes “portava mochilas e panos que recobriam os rostos”. Ele continua, relatando que “essa turba denominada ‘blackbloc’ a todo o momento gritava palavras de ordem com fins de agressão a instituição policial militar e instigação a violência geral”.
Segundo o registro, durante o deslocamento da Praça Cívica pela Avenida Goiás, no Centro da capital, nas imediações da Rua 3, região em que Mateus foi atendido logo após ter sido acertado pelo capitão, “foi localizado 2 pneus e um vasilhame contendo cerca de 2 litros de gasolina”.
No RAI, também é justificada a ação de policiais sobre os manifestantes. “Já na Praça do Bandeirante, os blackblocs passaram a soltar bombas e atear fogo em materiais do tipo madeira, tecidos, papelão e etc. Por volta das 12:00 horas os manifestantes mascarados identificaram duas pessoas o qual diziam ser policiais disfarçados e passaram a agredi-los”.
A partir daí, nas palavras do registro da ocorrência policial, “foi necessário a intervenção da tropa pra retirá-los da turba. Com isso o mesmo grupo de manifestantes passou a atirar pedras, tijolos e bombas em direção a tropa, vitrines e em parte dos manifestantes da CUT e outros sindicatos, momento em que se fez necessário o uso seletivo da força sendo e recuo da tropa para dissipar a turba iniciada”.
Houve “depredação de uma instituição financeira e comércios da região, sendo novamente necessário a aplicação do uso seletivo da força policial aplicando o uso do bastão policial”, menciona, sem citar o estudante.
“Durante a ação foi recolhido (sic) pneus, pedras, madeira, barra de ferro, combustível dentre outros materiais. Posteriormente a ação da polícia militar, os agressores se concentraram no cruzamento da Rua 03 com a avenida goiás”. Segundo dois manifestantes ouvidos pela reportagem, neste momento, eles acompanhavam o atendimento ao estudante.
Enquanto Mateus era atendido, o major Ananias, comandante da 37ª CIPM (Companhia Independente de Polícia Militar) e o major Batista, segundo o registro, iniciaram uma negociação com os “indivíduos que concordaram sair escoltados pela tropa da cavalaria e com a presença do pelotão de choque até a Praça Universitária, onde adentraram as dependências da faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás. Encerrando esta ocorrência aguardamos a identificação e qualificação dos autores para posteriores alterações no RAI”.
Escalada de omissões
“Sem dúvidas, ignorar esta agressão é grave e deve ser apurado pela corregedoria”, considera Valério Luís Filho, advogado especialista em Criminologia e Segurança Pública pela (Universidade Federal de Goiás) e presidente do Instituto Valério Luiz que, entre outras coisas, orienta vítimas de violência policial.
Antes de a agressão ter sido ignorada, porém, a primeira e mais clara omissão é flagrada pelas câmeras. O capitão Sampaio, depois de acertar a cabeça de Ferreira, segurando um cassetete partido ao meio, se refugiou junto a outros policiais, sem prestar socorro. “É possível ver nas imagens o momento em que ele evadiu-se do local, não providenciando ajuda”, afirma o criminalista.
No segundo episódio, o porta-voz da PM goiana, tenente-coronel Ricardo Mendes, garantiu que não tinha havido confronto entre policiais e manifestantes, mas apenas entre os próprios manifestantes. Quando as fotos e vídeos repercutiram, Mendes voltou atrás e assumiu que um policial havia se envolvido da agressão.
O terceiro episódio de omissão: a dificuldade da cúpula da PM goiana para revelar o nome do capitão Augusto Sampaio de Oliveira como agressor do estudante. O nome do Comandante Geral da Polícia Militar chegou a ser associado à foto em que Mateus aparece sendo agredido na cabeça e compartilhado quase 100 mil vezes nas redes sociais.
Logo depois, a identidade do capitão foi oficialmente revelada e foi anunciado seu afastamento das ruas. Mesmo assim, ele continuaria em atividades administrativas, recebendo normalmente, enquanto corre, por pelo menos um mês até ser concluído, o inquérito da Corregedoria da Polícia Militar, com “o objetivo de individualizar condutas e apurar responsabilidades”, conforme a nota da PM-GO. No ano passado, o capitão Augusto Sampaio de Oliveira Neto chegou a receber do governo de Goiás duas medalhas por merecimento.
Sobre a omissão no RAI (Registro de Atendimento Integrado), o delegado aposentado de Goiás, Edemundo Dias, mestre em Direito Público pela Universidade de Extremadura, na Espanha, e especialista em Políticas Públicas pela UFG, acredita que é preciso ser apurado pela corregedoria para avaliar possíveis irregularidades no RAI. “É preciso avaliar como ocorreu, se houve dolo, a má-fé de quem redigiu. Quem deve averiguar é a corregedoria da instituição. Qualquer opinião antes de a corregedoria investigar é precipitada”, ajuíza Dias.
Para Franciele Silva Cardoso, doutora em Direito Penal e Criminologia pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora associada no NECRIVI (Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência) da UFG (Universidade Federal de Goiás), “a violência policial é muito comum nas regiões mais periféricas, afastadas, invisíveis”.
O caso do Mateus ganhou bastante repercussão, porque além da violência em si, as imagens eram fortes. “A violência foi contundente, chamou mais atenção. Várias imagens sequenciais mostram tudo”, esclarece a pesquisadora. Segundo ela, é preciso investigação. “Muitas instituições promovem ou chancelam esta violência, não implementando efetivamente a investigação e punição desses acusados”, avalia Franciele.
Seis dias após o episódio, a Polícia Civil abriu um inquérito, a pedido do Ministério Público de Goiás (MP-GO). “O inquérito da Polícia Militar avalia a conduta do agente sob o aspecto do regimento da PM. Já o inquérito da Polícia Civil investiga crimes comuns que não dependem dos resultados do primeiro”, explica o criminalista Valério Luiz Filho.
O delegado titular do 1° Distrito Policial da capital, Izaías de Araújo Pinheiro informou que recebeu o pedido do MP-GO na quinta-feira (04/05).
“A princípio o inquérito apura se houve abuso de autoridade por parte do policial. A lesão gravíssima será apurada exclusividade pelo Inquérito Polícia Militar. Ainda vamos buscar imagens, ouvir testemunhas, familiares da vítima e depois o capitão”, disse ao G1 Goiás.
Outro lado
O porta-voz da Polícia Militar, o tenente-coronel Ricardo Mendes, não quis comentar a omissão no RAI do episódio entre o capitão e o estudante, mas ele se restringiu a ditar: “Abre aspas. Ocaso do estudante Mateus Ferreira da Silva, ocorrido no dia 28 de abril, durante o protesto será investigado pelo inquérito da Polícia Militar, determinado pelo Comandante Geral da PM-GO. Fecha aspas”.
A Ponte procurou o comandante-geral da Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO), o coronel Divino Alves de Oliveira. “Essas e outras perguntas serão respondidas pelo inquérito”, limitou-se a dizer.