A delegacia municipal de São Gabriel da Cachoeira (AM), cidade com a maior população indígena do país, funciona como presídio. A cela feminina e a dos jovens ficam lado a lado, seguidas pelas masculinas
A única porta da delegacia municipal de São Gabriel da Cachoeira (AM) que dá acesso à carceragem está destrancada. Tão pesada quanto o ferro que a compõe é o que ela esconde. Além das condições insalubres e da superlotação, homens, mulheres e adolescentes, a maioria indígena, dividem o mesmo teto. “Nenhum direito nesta prisão é respeitado”, diz o delegado Rafael Wagner Soares, 36, responsável pelo local.
Em 30 de maio deste ano, o delegado Soares escancarou a porta da carceragem para a reportagem. Um sopro de vento quente ameniza o interior sufocante da delegacia. Lá fora, os picos de temperatura no inverno chegam a 35º C. Um emaranhado de fios pula da caixa da rede elétrica em direção às celas. O “gato” permite que o ventilador da cela 1 funcione ininterruptamente. O ar, viciado, não circula para as quatro mulheres no cubículo. Apenas uma delas é beneficiada com a brisa.
O aparente privilégio é, na verdade, preocupação com o futuro que cresce na barriga de Priscilla*, 29, presa há três anos. “Engravidei na cadeia.” Para explicar a gestação, que ela afirma ter alcançado o quinto mês, diz: “Meu marido cumpria pena aqui também” – a legislação brasileira não prevê direito à visita íntima entre presos, porque eles nem deveriam conviver no mesmo espaço.
Indígena da etnia baré, Priscila foi presa por tráfico de drogas, o crime mais comum na região. Os quatro filhos mais velhos ficaram com a sogra. O então caçula, com a mãe dela. A pena de Priscila termina em 2021, quando o bebê que nem nasceu completará 4 anos. “Minha pena poderia ser revista, eu sei, mas aqui a gente não tem acompanhamento”, diz, sobre a Defensoria Pública municipal, que encerrou atividades recentemente. Ao falar do filho, as mãos tremem. Ela para de tricotar uma blusa de bebê e chora. “Eu cometi um crime, fui condenada e tenho que cumprir minha pena. Mas eu mereço ser tratada com dignidade. Isso aqui é desumano.”
A situação na cidade com maior população indígena do país descumpre uma série de artigos da Lei de Execução Penal. Presos provisórios deveriam ir para cadeias públicas; condenados, para presídios; adolescentes para unidades socioeducativas; e mulheres e homens não podem dividir o mesmo ambiente. “Nós entramos com uma ação civil pública para que o estado do Amazonas seja compelido a regularizar essa situação”, diz o promotor Paulo Alexander Beriba. E continua: “A gente trabalha com o que pode perante a falha estatal.”
“Já trabalhei em outros dois municípios no Amazonas (Carauari e Maraã). É tudo igual. Aqui é o único estado no Brasil onde homem, mulher e adolescente cumprem pena junto. É um total abuso em cima de abuso”, diz o delegado Soares.
Em 54 dos 62 municípios do Amazonas os presos cumprem penas em delegacias confirmou, em nota, a secretaria de Administração Penitenciária do Estado. Apenas a capital, Manaus, possui unidades socioeducativas – um total de quatro, sendo uma para detenção provisória. O cumprimento de pena em delegacia não é uma prática incomum no Brasil, apesar de ser contra a lei.
“Isso é absolutamente ilegal. Os riscos são enormes para a integridade de todos”, afirma Henrique Apolinario, assessor do programa de justiça da ONG Conectas. “Isso é tortura e tratamento degradante institucionalizados”, diz, sobre as violações de direitos humanos.
Na delegacia de São Gabriel da Cachoeira, adolescentes, presos provisórios e os julgados não têm direito a banho de sol, a trabalho nem acesso à educação. Recebem apenas assistência religiosa, em que costumes e tradições indígenas tem pouco ou quase nenhum espaço para resistir. “Isso agrava a saúde mental e física de pessoa. Nem uma animal conseguiria viver nessa situação”. A situação de Priscila, mãe de seis, diz Apolinario, também poderia ser outra. “Já existem meios legais para substituir a pena. Você precisa garantir que essa e todas as mães estejam com seus filhos.”
Do lado esquerdo do corredor, no chão, nove garrafas plásticas que os presos recebem para tomar banho, higiene e beber – o local estava havia nove dias sem água. Na cela feminina cabem apenas dois colchões de solteiro, mas outras três mulheres cumprem pena com Priscila. Uma é indígena da etnia baré e uma tukano.
Ana*, de 39 anos, identifica-se como cabocla. “Você imagina o que é ser mulher aqui?”, pergunta Ana. Com a falta de água, as roupas sujas já não cabiam mais em baldes. Material de higiene, como sabonete e absorvente, não chega pelo estado. O pesquisador Guilherme Pontes, da ONG Justiça Global, criticou as violações de direitos humanos. “É um absurdo que homens e mulheres estejam em uma mesma unidade, e mais absurdo ainda é cumprirem pena em uma delegacia, e não em um presídio”, diz.
Mãe de quatro filhos – um deles preso na cela ao lado por homicídio-, Ana pediu ajuda à reportagem. “Do meu peito escorre um líquido escuro. Quer ver?”. Sob o olhar das colegas, sem pudor, tira o peito para fora da blusa e aperta o mamilo esquerdo. Então, uma secreção escura escorre. “Você pode gravar? Quem sabe assim me ajudam”, diz. Para ir a uma consulta, Ana precisa estar acompanhada de um agente de segurança. E aí está outro problema da delegacia.
Na prática, Soares e o investigador Alexandre Galvão Neto, 45, são os únicos responsáveis pelos então 54 presos, pelas investigações de todos os crimes no município e pelas demais atribuições da Polícia Civil. São Gabriel da Cachoeira é a terceira cidade com maior extensão territorial do país e a maior com áreas protegidas da União. “Será que é um trabalho eficiente?”, pergunta ele, retoricamente. “Não fiz concurso para superhomem.”
No segundo semestre de 2016, pouco depois de assumir como delegado em São Gabriel da Cachoeira, Soares encaminhou, em 9 de setembro, um memorando ao diretor do departamento da Polícia Civil do Interior Mariolindo Brito dos Santos, que responde à direção da Polícia Civil e, em última instância, à Secretaria de Governo do Estado. No documento, ele citou as irregularidades da delegacia no Amazonas e que 52 detentos cumpriam pena em regime fechado e sete no semi-aberto.
Em fevereiro de 2017, Soares diz que investigou uma denúncia de tortura contra presos envolvendo policiais militares, então responsáveis pela carceragem da delegacia municipal e da especial (para mulheres, crianças e idosos), ambas no mesmo espaço físico. Outra irregularidade, uma vez que a PM não é encarregada desse ofício. A investigação não foi bem vista pela PM, diz Soares. Por isso, ele “ganhou” o comando de ambas em fevereiro. Procurada, a PM não retornou.
De novo, Soares escreveu memorandos a Brito dos Santos. O segundo chegou às mãos de Brito dos Santos em 16 de março. O terceiro, em 30 de março. No último, de 27 de abril, Soares disse que a delegacia estava sem telefone há um ano, sem impressora há um mês e que as duas viaturas estão “no limite”. O documento, assinado pelo delegado e pelo investigador, diz: “Em consequência de todo esse descaso com as delegacias de São Gabriel está ocorrendo o acúmulo de inquéritos, flagrantes sendo entregues de forma intempestiva, não está mais sendo realizado atendimento ao público, bem como o registro de ocorrências.”
“Nunca me responderam”, diz Soares. Por nota, a assessoria de comunicação da Polícia Civil do Amazonas confirmou as irregularidades constatadas pela reportagem, mas não falou das violações de direitos humanos. Sobre a falta de equipe, afirmou que a instituição “pretende realizar o próximo concurso público regionalizado”, sem mencionar prazos.
No dia que a reportagem da Repórter Brasil esteve na delegacia, três famílias indígenas aguardavam atendimento. Uma buscava informações do companheiro preso. Eram 15h e a mulher, que não quis se identificar, estava bêbada e amamentava um bebê de colo. “Aqui todo dia é assim. Tem vez que o pai vem bêbado buscar o filho menor de idade”, diz Soares. O alcoolismo é um grave problema social e de saúde nas comunidades indígenas. Um rapaz perguntava sobre a tia e sobrinho, ambos indígenas, detidos horas antes por tráfico de drogas.
A reportagem presenciou a “detenção” desse adolescente. Junto dele e da tia veio aprova do crime, um colchão de casal, com uma mancha azul – prova da reação química para cocaína, disse o delegado. O caso deveria ter sido encaminhado com urgência a um juiz. “Mas o juiz vem uma vez por mês, julga os casos mais urgentes e vai embora”, diz Soares. O garoto, de olhos assustados e camiseta e shorts azuis, seria liberado no dia seguinte.
Na cela 2 estão quatro adolescentes, com idades entre 15 e 17, estão. Todos se identificaram como indígenas. Além do rapaz “detido” por tráfico, estão três que respondem por homicídio. O trio foi preso junto. “Eles entravam na casa das pessoas e matavam com golpes de terçado (facão) na cabeça. Se você devolve esses jovens para a sociedade sem um acompanhamento, o que vai acontecer?”, afirma o promotor. O delegado Soares diz que enfrenta resistência para mandar adolescentes para Manaus, onde existem unidades para jovens em conflito com a lei.
A Secretaria de Estado de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Amazonas, pasta responsável pelos adolescentes, respondeu, por nota, que o Estatuto da Criança e do Adolescente permite que a delegacia tenha “um local reservado, separado dos adultos, para manter os adolescentes até a definição da situação instituída pelo juíz, geralmente o prazo é de 72 horas (sic)”. Sobre os adolescentes em “internação provisória”, limitou-se a responder que “não pode.” Como nenhuma cidade do interior possui unidade socioeducativa, a reportagem questionou quantos foram os adolescentes do interior encaminhados para a capital no último ano. A pasta não respondeu.
Pontes, da Justiça Global, chama as violações de direitos humanos de “ilegalidade extremada”. “‘É inadmissível existir uma cela para adolescentes e pior ainda ela estar dentro de uma cadeia com maiores de idade”. E continua, dessa vez, falando sobre a ausência do juiz: “(O juiz vai) Uma vez por mês para avaliar direitos que estão sendo violados? Não se pode naturalizar que pessoas sejam providas de liberdade em desacordo com a lei. Isso é sequestro.”
A legislação brasileira determina que cidades com comarcas, como São Gabriel da Cachoeira, tenham obrigatoriamente um juiz fixo e uma defensoria. Em nota, o Tribunal de Justiça do Amazonas confirmou que a comarca de São Gabriel da Cachoeira está sem juiz titular e que um magistrado responde cumulativamente “e se desloca para o município com regularidade”. Também diz que o Tribunal “realizou concurso público para o provimento das referidas vagas”, mas não menciona quando as nomeações serão anunciadas.
Apesar de o Tribunal de Justiça afirmar que a presença de adultos e adolescentes em um mesmo recinto está relacionada “à precariedade de infraestrutura do sistema prisional na cidade”, e que a “construção desses equipamentos não é responsabilidade do Poder Judiciário”, Apolinario, da Conectas, afirma que o judiciário foi negligente e omisso em relação às violações de direitos humanos. “Cada lugar pela qual a denúncia passou e ninguém fez nada é responsável.”
O promotor Beriba afirma que São Gabriel da Cachoeira é apenas uma das cidades do interior do Amazonas que sofrem com o mesmo problema. Diferentemente das áreas urbanas, as comunidades no Amazonas, de maioria indígena, estão a horas de viagem do centro da cidade. “Para chegar em algumas comunidades indígenas mais afastadas, levo até um dia de viagem em barco”, diz. “O governo precisaria construir presídios em cada cidade, porque as distâncias aqui são grandes e o preso tem o direito de ficar perto da família.”