Rapper do grupo Insurreição CGPP, em entrevista à Ponte, fala sobre a música, o genocídio e o progresso
Historicamente, o Hip Hop tem ligações fortes com movimentos negros. No Brasil, mais especificamente no Grajaú, extremo da zona sul da cidade de São Paulo, um grupo segue à risca essa mistura entre os movimentos. É um grupo novo, comparado aos tradicionais rappers que denunciam os problemas sociais e raciais no Brasil. O Insurreição CGPP (Contra o Genocídio do Povo Preto) nasceu em junho de 2013, e um dos criadores foi o poeta Carlos Rodrigo, o Fuca.
Em entrevista realizada pela Ponte em uma praça pública de um dos bairros escondidos do Grajaú, Fuca ressalta que a presença naquele lugar, em uma noite, “já nos coloca no crime”.
O grupo que Fuca integra junto com Miguel Ângelo, estudante de Saúde Pública na USP (Universidade de São Paulo), tem muito significado e histórias desde o nome. “Insurreição traz essa questão das revoltas, que tem muita coisa que é passada e as pessoas aceitam de forma passiva”, explica, remetendo às rebeliões dos escravos.
As músicas, como o nome sugere, falam acerca do racismo e tantas outras reivindicações do movimento negro. Fuca também integra um movimento de resistência do Hip Hop, que busca fomentar a cultura na região, e usá-la como ferramenta de protesto e informação social, assim como era no início do rap no Brasil, nos anos 1990.
O artista acredita que boa parte dos protestos contidos nas letras de rap há 20 anos ainda merece ser cantada, porque “estruturalmente ainda está muito complicado”. Para ele, o progresso material que parte dos moradores das periferias teve não diminui o genocídio contra a população negra e a violência do Estado, seja fisicamente, com a polícia, seja na questão educacional, de acesso à cultura, entre outros fatores.
Além disso, Fuca afirma que o progresso material não chegou para todos. Ele sente isso bem próximo diariamente, no trabalho, lidando com a população em situação de rua em um albergue de Santo Amaro, também na zona sul paulistana.
Leia a entrevista:
Ponte: O que te levou para o rap?
Fuca (Insurreição CGPP): Os primeiros contatos que eu tive com a música, de querer comprar CD e gravar, foram com o rap. Na época tinha até aqueles gravadores, e a rádio 105 FM ajudou muito, porque sempre passava a parte do rap, que eu colocava a fita ali e ficava gravando as músicas que ouvia. Lembro que tinha música que não pegava inteira, porque a rádio já começava pela metade. Então aí comecei a escutar. Outro fator importante foi a região, que muita gente escutava rap: é uma cultura de massa. Todo mundo escutava, e pelo rap falar de uma realidade que a gente vive, eu comecei a ouvir. Esse programa da rádio eu não perdia por nada, sempre rolava as fitas emprestadas para uns parceiros, pegava de outros. Quando tinha algum evento a gente tocava essas músicas.
O que você captava do rap?
Por mais que falasse de rolê, de um momento que tava passando, sempre tinha a crítica social, racial, bacana. Não era nada acadêmico, era coisa de quem vivia mesmo. No sentido de denúncia. O rap é um instrumento que te serve como a voz. Tem um monte de coisa entalada em você e o cara vem ali e canta o que você passa.
Quais grupos você ouvia quando conheceu o rap?
Tem os tradicionais, que a gente fala que são os clássicos: Racionais, Facção Central, Detentos do Rap, RZO, Sabotage, Consciência Humana, De Menos Crime. Esses não podem faltar, todo lugar que toca, é o CD do início ao fim. Tem uns grupos que não estouraram, mas as músicas se fazem muito presente, como Alerta Vermelho, que falava uns baratos que a gente ‘caramba, mano!’. Eu já era adolescente, e ficava pensando no que ele tava falando. Outro que eu curtia era Realidade Cruel, com a música Dia de Visita. O grupo Face da Morte, eu lembro que tinha uma música que falava sobre a realidade de um maluco que entrou para o crime, e uma realidade na cadeia lá, que ele foi tentar fugir e levou um tiro. Eram histórias fáceis de entender na nossa linguagem e atingia. Isso é pura arte. Assim como todas as artes que são valorizadas, essa arte não sai do vazio. E eu sabia que todos esses rappers que eu tô falando tinham influência de artistas dos Estados Unidos, mas eu curtia mesmo era o rap daqui, por entender o que eles tavam falando.
Quando você começou a cantar e escrever rap?
Sempre escrevia com os meninos aqui. Escutava rap e escrevia umas coisas de moleque mesmo. Mas o rap precisa ter levada, ter voz, ritmo, compasso, toda essa parada. As pessoas pensam que é só colocar uma base ali e começar a cantar do nada. Essa parte da música que é bastante interessante. Você entrar no compasso. Então essas letras que eu fazia ficavam paradas. Até quando comecei a desenvolver, tirar do papel, por meio do movimento ligado ao Hip Hop, o Fórum do Hip Hop, que entrei em 2012.
Hoje você vive da música?
Não. Eu trabalho como orientador socioeducativo, em um albergue, com população em situação de rua. Foi algo despertado em função do rap, que me fez pensar que eles são do nosso povo, não são inimigos. Tem algo estrutural que faz, na maioria dos casos, para colocar a pessoa naquela situação. Assim como nas cadeias, não é algo acidental. É muito programado mesmo.
De quando você começou a ouvir rap, nos anos 1990, pra hoje, você vê progresso?
A nossa proposta desse o início do grupo foi falar do genocídio, e a gente tava muito nessa questão de chacina, essas coisas de letalidade policial que vinha acontecendo desde antes e o pessoal fala de progresso, sendo que acontece ainda, mas de uma forma mais camuflada, que faz as pessoas pensarem que não existe mais. Essa outra face do progresso é isso. Você vê que algumas pessoas da periferia conseguem comprar uma TV de led, mas a gente percebe que ainda tem um monte de gente que não consegue. Isso pega bastante a juventude, que não consegue ter as coisas e tem as necessidades. Ainda existe aquela necessidade de sobrevivência, que está na miséria mesmo, precisa de comida para pôr no prato. E tem aquela necessidade do status, que já é mais inerente do ser humano, que diz ‘eu quero ser alguém, mas se eu vender um amendoim no farol, as pessoas vão me olhar com desdém’. Elas pensam que só serão respeitadas quando tiverem com um revólver na mão. Essa é a realidade que eu vivo no trabalho, na periferia, que pensa que é mais respeitado quem é mais violento. A violência te põe respeito. E tem mesmo esse status, aquela pessoa que tava vendendo amendoim, estava ali renegado, se revolta e vai. A gente tenta mostrar que esse não é o caminho, porque esse é um estado de espírito que toma a pessoa e a gente não vê ninguém se aposentando. Apesar que hoje em dia, para se aposentar, até para trabalhador está difícil. Isso o rap também retrata, da pessoa estar no crime, estar bem de vida. Mas o crime que a gente fala não é o crime das canetas.
O que você quer atingir com seu rap?
O primeiro tópico são as denúncias, continuar fazendo, para honrar todo esse legado que foi feito, e a partir dessa visão de que não houve nenhuma grande mudança estrutural, tentar evidenciar nas letras, oficinas e eventos. A gente procura propor algumas coisas, que é para o povo se organizar nos seus segmentos. A gente procura dialogar muito com a nossa matriz, movimento negro, o povo preto, e procurar uma reestruturação. Procurar saber da sua história, que é uma prática que os mais velhos chegam e passam aquele conhecimento, aquela sabedoria para os mais novos. Saber que a história não é de derrotados, que isso foi algo que aconteceu devido ao processo pesado que a gente passou, que se a gente veio pra cá, vive em terras estrangeiras, viemos forçados. Antes de vim pra cá, a gente vivia como reis e rainhas. Então é justamente isso, contar uma história de vitória para não atingir muito essa questão do psicológico, de falar ‘pô, eu já vim derrotado aqui, sou predestinado a ser derrotado’. Por exemplo, o genocídio que está em curso já não tem mais volta. A gente quer mostrar que o genocídio não é só quando acontece a morte, ou eventos como maio de 2006, que em uma semana 496 pessoas foram mortas. Não precisa acontecer isso para ser um genocídio, mas isso também faz parte do genocídio. Quem acaba sempre pagando por toda essa guerra é o povo pobre, a periferia.