Para especialistas, conduta de agente público reforça mentalidade violenta e machista aceita pela instituição; PMs podem ser acusados de injúria, ameaça e prevaricação
Policiais militares acompanhavam uma marcha anti-fascista organizada por grupos autônomos nesta quarta-feira (29/11), na região da Avenida Paulista, na cidade de São Paulo, quando um dos PMs passou a provocar de forma machista uma participante da manifestação. “Vai, demônio. Vai, Puta. Vai trabalhar, vagabunda. Vai dar o cu, sua puta. Lixo. Vou te prender, maconheira do caralho”, diz o policial à jovem, que não reage, conforme mostrado no vídeo.
Para Camila Marques, advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da ONG Artigo 19, especializada na luta pelo direito à liberdade de expressão, o comportamento do policial revela uma prática misógina institucionalizada. “O vídeo mostra de forma clara uma série de ações arbitrárias e violentas da polícia e comprova, mais uma vez, que não estamos falando comportamentos e ações pontuais, pelo contrário, existe toda uma coordenação sistemática para a repressão. Mas o que mais me chama a atenção são os abusos e as intimidações sexuais mostradas”, critica.
“As mulheres que vão aos protestos estão sujeitas, para além das violações que atingem todos os manifestantes de forma geral, a violações muito específicas decorrentes de sua condição de mulher. Muitas mulheres são alvos de ofensas sexistas, comentários insinuantes durante as abordagens policiais, abusos sexuais, estupros, revistas abusivas, entre uma série de outras práticas machistas e criminosas”, pontua Camila.
A militante feminista Maira Pinheiro, integrante da Rede Feminista de Juristas, concorda e destaca a tentativa de depreciar a mulher que não se submete ao homem. “A mulher que é criminalizada responde sempre duplamente: por violar os ditames da lei e do patriarcado. Ela é criminalizada por se insurgir e por ser uma mulher que se insurge e isso se verifica facilmente pelo uso de xingamentos machistas, ligados à moral sexual da mulher”, afirma. “É muito comum, eu diria que é regra que policiais militares tratem as mulheres assim”.
Além disso, Maira aponta que é possível, a partir da gravação, enquadrar o agente por injúria e ameaça. “Injúria nos xingamentos e ameaça quando ele diz que ela vai apanhar, quando ele ameaça prender sem motivo. Tem um momento em que ele fala ‘se conversar comigo, eu vou prender’ e ao ser questionado ele responde algo como ‘porque eu quero’ ou ‘porque eu posso’. Nessa situação, ele está agindo explicitamente de forma contrária à lei, já que conversar com um policial não configura desacato, então ele não poderia prender, para obter uma vantagem pessoal, que no caso é a vantagem moral de afirmar a sua superioridade e o domínio da situação”, explica Maira. “Essa conduta poderia ser entendida como prevaricação, crime próprio de funcionário público”, diz.
Mas a advogada admite que dificilmente, caso a ofendida entrasse com uma ação, a Justiça entenderia dessa forma. É que, segundo ela, há uma condescendência dos magistrados com atitudes, ainda que reprováveis, das forças de segurança.
A advogada da Artigo 19, Camila Marques, também destaca que, nas imagens, fica claro que a ordem para os abusos vem de cima. “Fica evidente que o comando da operação dá ordens expressas para que a Rocam [Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas] parta para cima, intimide e cerque os manifestantes”, afirma.
Desrespeito à Constituição
Um dos argumentos utilizados pelos policiais militares que acompanhavam o protesto para desqualificar a marcha é que os grupos não teriam informado a realização do ato previamente, incluindo trajeto previsto. A liberdade plena para realização de protestos, porém, está prevista no artigo 5º da Constituição. “A Constituição fala em aviso prévio genericamente, de forma que a exigência deve ser interpretada no sentido de cientificar as autoridades da ocorrência do protesto, o que pode ser feito inclusive pela internet e redes sociais, como argumentam os manifestantes. Além disso, a discordância quanto à forma de comunicação jamais pode servir como pretexto para a repressão ou inviabilização do direito de protesto”, explica Camila Marques.
Outro elemento que fere o direito a protesto, de acordo com a especialista, é a ausência ou dificuldade de identificação dos policiais. Na marcha desta quarta-feira, a tropa da Rocam portava códigos com números em vez de nome nas tarjetas de identificação da farda. Camila sugere que a prática, observada de maneira sistemática em 2013, acaba facilitando violações. “A retirada da tarjeta identificadora dos agentes policiais ou sua substituição por códigos alfanuméricos impossibilita qualquer controle social posterior da atividade. Esse tipo de comportamento é inaceitável até mesmo pelo regimento interno da Polícia Militar e, do ponto de vista do direito de protesto, facilita a manutenção das práticas abusivas que temos acompanhado nos últimos anos”, conclui a advogada da Artigo 19.
Governo não se manifesta
A Ponte enviou por e-mail os seguintes questionamentos às duas assessorias de imprensa: da Polícia Militar do Estado de São Paulo e à CDN Comunicação, assessoria privada da Secretaria da Segurança Pública do governo Geraldo Alckmin (PSDB).