Governo goiano colocou presos de facções rivais na mesma unidade prisional. O resultado foi uma rebelião que deixou 9 mortos e 13 feridos
A rebelião que deixou 9 mortos e 13 feridos na Colônia Agroindustrial do Complexo Prisional da cidade de Aparecida de Goiânia, na região metropolitana de Goiás (GO), no primeiro dia de 2018, foi protagonizado por presos ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital). Vídeos a que a Ponte teve acesso mostram os presos gritando “aqui é PCC” e “olha aqui o que ‘nós’ faz com Comando Vermelho” enquanto mutilam os corpos de rivais.
Inimigos mortais, as facções criminosas PCC e Comando Vermelho (CV) haviam sido colocadas lado a lado, na mesma unidade prisional, pelo governo Marconi Perilo (PSDB). Os presos do PCC estavam na ala C da Colônia Agroindustrial, de regime semiaberto, enquanto os detentos do Comando Vermelho e de outras facções inimigas ocupavam as unidades A e B.
No primeiro dia do ano, os presos da ala C quebraram a parede e, armados de estoques (armas improvisadas), invadiram as alas A e B, onde executaram seus rivais. Dois foram decapitados. No vídeo, os homens gritam “é tudo nosso, Satanás” e “é nosso, desgraça” enquanto passam, de mão em mão, a cabeça de um detento. A cabeça é jogada no chão, esfaqueada e, por fim, atacada com pedras e um ferro. Eles também gritam o número 1533, uma referência ao PCC (P é a 15ª letra do alfabeto e C, a terceira).
“As facções criminosas comandam a maioria dos presídios brasileiros ou tem grande influência. Os agentes tentam realizar o seu trabalho com rigor, mas não têm instrumentos suficientes para isso”, confirmou o secretário de Segurança Pública de Goiás, Ricardo Balestreri, ao G1.
Procurada, a assessoria de imprensa da Segurança Pública respondeu que “quem manda para o regime semiaberto é o Poder Judiciário” e que os presos “estavam separados por alas”.
De muletas, não conseguiu fugir
Um dos presos decapitados era era Fernando Souza Pimenta, 37 anos. Preso em 8 de dezembro de 2016, estava no semiaberto desde 13 de dezembro do ano passado.
Fernando andava mancando e, para não se desequilibrar, usava muletas. Por isso não conseguiu pular o muro e evitar a morte no dia da rebelião. Nos últimos meses, conta a mãe, Maria de Fátima, 53 anos, seu filho vinha sofrendo ameaças. “Ele me contou que os presos falavam que, se ele não parasse de usar muletas, eles iam enfiá-las nele. Você entendeu, né?”, disse à Ponte.
Fernando foi preso em flagrante por policiais militares depois de um roubo. Na fuga, a viatura, segundo a mãe, teria batido na moto. Com a perna quebrada, teve de colocar platina, que infeccionou nos últimos meses.
No Natal, Maria preferiu ficar em casa. “Vou no Ano Novo, filho”, disse, em uma ligação. Na sexta-feira (28/12), Maria soube, por meio de agentes, que o filho teria sido levado para o Huapa (Hospital de Urgências de Aparecida de Goiânia) para tratar a perna. “No semiaberto falavam que meu filho estava no hospital, mas lá me falavam que não tinha ninguém com aquele nome.” Sem informações, passou os últimos dias que antecederam ao motim atrás do filho entre a unidade prisional e o hospital.
No dia 1°, ela foi mais uma vez em busca de Fernando no presídio, mas, quando se aproximava com o carro, viu dezenas de presos descalços, sem camisa, machucados, correndo desesperados. Com medo de levarem o carro dela para facilitarem a fuga, Maria saiu dali. “Voltei para o hospital, atrás do meu filho, depois de passar na casa de uma prima. Encontrei vários presos nos corredores, machucados. Eles estavam enfaixados, sangrando. Nada do Fernando.”
Um dia depois da rebelião, Maria ainda procurava por Fernando, em frente à unidade quando a mãe de outro preso lhe chamou num canto. “Você sabe que alguns morreram? E que cortaram a cabeça?”, a mulher perguntou, tirando o celular da bolsa. Ela abriu o Whatsapp e mostrou a fotografia da cabeça de Fernando. Ele receberia, pela primeira vez, a visita da filha, de 16 anos, no início de janeiro.
Maria de Fátima conta que pressentiu o fim trágico do filho. Durante o período em que Fernando permaneceu preso, sem ainda ter sido julgado, procurou o MPGO (Ministério Público do Estado de Goiás), a OAB-GO (Ordem dos Advogados do Brasil), mas não conseguiu respostas ao pedido de tirá-lo da superlotação do semiaberto. “Eles disseram que eu tinha que pagar R$ 300 reais mensais pela tornozeleira”, afirma. Procurado pela Ponte, o governo não comentou a denúncia da mãe do preso.
O advogado da família, Tadeu Bastos, vai pedir reparação de danos para tentar amenizar a dor de Maria. “O Estado deve pagar por não ter garantido, de forma efetiva, a integridade física do meu cliente. Não deu o mínimo de dignidade para cumprir a pena, buscar a ressocialização como prevê a lei. De forma digna, segura.”
Durante todas as visitas, Maria teve de levar comida e água potável ao filho. “Ele morreu sem beber água, sem comer. Todos nós, parentes, sabemos que não tinha. E ainda foi assassinado, teve a cabeça arrancada e o corpo queimado”, lembra.
“Semiaberto maquiado”
No total, 242 presos fugiram no dia rebelião. Destes, 143 foram recapturados ou voltaram voluntariamente ao presídio. Até agora, 87 permanecem foragidos.
No momento do motim, cinco agentes vigiavam 768 presos que deveriam trabalhar de dia e pernoitar no presídio. Não era o que vinha ocorrendo. “Aqui, a maioria não trabalha. É um semiaberto maquiado”, contou à Ponte um dos agentes, que fugiu ao ver pelo menos 200 presos em pânico escapando por todos os lados.
“Eles vão se apresentar para morrer? Eles querem trabalhar, como deve ser feito. O Estado não tem condições de alojar e vai misturar as facções”, reclamou o advogado de seis dos presos que estão foragidos, Gilberto Ortiz da Cruz.
Segundo Cruz, alguns presos se apresentaram com nomes falsos para evitar a morte. “Eles já não tinham controle no semiaberto, agora está uma grande baderna. Tenho um preso que está em casa, mas ele consta que está de volta porque usou outro nome. Vou pedir o habeas corpus para alguns que podem voltar para o regime fechado. Se o Estado não consegue cumprir a Lei Execução Penal e a jurisprudência, precisaria colocá-los em liberdade”, explicou Cruz.
Advogados, agentes penitenciários e familiares de presos contam que já sabiam que a qualquer momento explodiria o sangrento conflito.
Uma vistoria determinada pela ministra Cármem Lúcia, presidente do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e do STF (Supremo Tribunal Federal), foi feita na manhã de quarta-feira (3/1) e encontrou uma estrutura arruinada. Mesmo assim o local não foi desativado.
Representantes do Tribunal de Justiça, Ministério Público, OAB, Defensoria Pública e Secretaria de Segurança Pública de Goiás, em uma inspeção que durou uma hora e meia, percorreu as alas e ouviu seis presos que sobreviveram à matança.
A vistoria resultará em um relatório que será enviado à ministra Cármen Lúcia. Em novembro do ano passado, no entanto, outra vistoria foi realizada. Um relatório do CNJ divulgado deu conta das precariedade do local e evidenciou a superlotação: eram 1.153 presos, o dobro do que a estrutura suportaria, com apenas 46 agentes penitenciários atuando.
À época, a vistoria apreendeu 22 telefones celulares. Como diz o relatório, ainda faltava bloqueador de celular. Desde 2014, o problema carcerário não gerou qualquer ação do Estado. Uma recomendação pedia a construção, em seis meses, de quatro unidades no complexo prisional para presos do regime fechado com 1.600 vagas e, no mesmo prazo, uma nova unidade para os detentos do regime semiaberto com capacidade para 500 internos.
A intenção seria desativar o prédio em que ocorreu a rebelião e resultou em mortes e feridos. O presidente do Tribunal de Justiça de Goiás, Gilberto Marques Filho, disse que o Poder Judiciário já tinha denunciado a realidade do sistema prisional de Goiás.