Duas semanas depois da execução da Marielle Franco, mulheres negras e lésbicas contam para a Ponte a importância da luta da vereadora pela causa LGBT
“Quando recebi a notícia da execução da Marielle, eu fiquei em pânico total, entendi como uma mensagem muito explícita de que a gente não pode existir, que a gente não pode resistir, que eles vão acabar com a gente de toda forma. Foi como se eles tivessem matado a nossa esperança”. É assim que a artista plástica e grafiteira J. Lo Borges define o trágico 14/3, quando a vereadora Marielle Franco (PSOL) e o motorista Anderson Gomes foram executados no centro do Rio de Janeiro. A psolista era conhecida pela postura combativa contra a violência policial, especialmente na favela, seu local de origem, e na luta pelos direitos da população LGBT, da qual fazia parte. O crime completa duas semanas nesta quarta-feira e as investigações não chegaram a nenhum suspeito até o momento.
Inconsolável, a mulher de Marielle, a arquiteta Mônica Tereza Benício, falou dos planos do casal alguns dias após o crime, em entrevista à TV Globo. Ela contou que as duas iam oficializar a relação em breve. “Não consigo acreditar que ela não vai mais voltar para a casa”, disse. À Revista Cláudia, Mônica contou que Marielle é “a mulher que amou desde os 18 anos”.
Preta, favelada e lésbica. Era assim que Marielle costumava se apresentar. Em um ano de mandato como vereadora, Marielle lutou ativamente pela visibilidade lésbica dentro da Câmara. Um dos 20 projetos de lei que a vereadora tentou emplacar em seu mandato defendia a inclusão do Dia da Visibilidade Lésbica no calendário da cidade do Rio de Janeiro, comemorado em 29 de agosto.
Além da luta específica junto à militância lésbica, Marielle também representava e se identificava como bissexual. No dia da morte dela, no evento da Casa das Pretas, a vereadora chegou a falar sobre isso. “”O lugar de mulher, mulher negra, bissexual, agora estou casada com uma mulher, mas tenho uma filha. Dessas muitas representações a gente vai aprendendo, conhecendo e estudando mais”, disse.
E o discurso de Marielle era prática na atividade legislativa. “Eu sou porque nós somos” era a frase favorita de Marielle para representar as suas lutas ao lado do movimento de mulheres lésbicas do Rio. Foi esse apoio da vereadora que fez nascer uma unidade na luta pelo L do LGBT. Camila Marins, jornalista e ativista lésbica de 32 anos, participou de diversas reuniões ao lado de Marielle na Câmara durante a articulação pela PL da Visibilidade Lésbica e afirma que o comprometimento da vereadora era uma das características mais marcantes. “Foi o primeiro mandato que abriu as portas para as mulheres lésbicas e não foi aquele papo de ‘o gabinete está à disposição, tragam as suas demandas e venham até nós’. Ela foi até nós. Ela ligou, mandou o convite para cada uma das lideranças lésbicas para que a gente pudesse fazer uma reunião no gabinete e construir o projeto de lei pela Visibilidade Lésbica no Rio de Janeiro”, conta Camila.
Camila faz parte da Frente Lésbica do Rio de Janeiro, movimento que nasceu graças a luta de Marielle pelo fortalecimento dessa pauta na cidade. O movimento fez parte da construção do PL rejeitado na Câmara, em agosto de 2017, por 19 votos a 17. Apesar disso, se tornou o projeto com temática LGBT a chegar mais longe na Casa, já que todos os outros que tratavam do tema nem chegaram a ir para votação.
O desafio de ser lésbica na favela
A primeira vez que Marielle se declarou como mulher lésbica foi no dia da Visibilidade Lésbica, na Maré, em 2016, como contou para a Ponte a assistente social Dayana Gusmão, moradora da Maré e integrante de diversos coletivos de mulheres lésbicas, incluindo a Frente Lésbica do Rio. “Marielle falou pela primeira vez publicamente que ela era sapatão aqui na Maré e isso é muito importante pra gente, pois ela foi um projeto nosso, ela era filha da nossa gente. Ela foi resultado de um trabalho longo e duro de várias lideranças. Marielle foi um divisor de águas dentro do movimento de mulheres lésbicas no Rio”, conta Gusmão.
As intersecções e os recortes de raça e gênero são mais complicados para mulheres lésbicas, como afirma Dayana, principalmente quando essas mulheres moram nas periferias e favelas. “Dentro da favela essas coisas são mais complicadas. A gente tem casais de mulheres casadas e vivendo juntas na Maré, mas para os vizinhos elas são amigas. E isso tem um porquê: o racismo estrutural e o alto índice de feminicídios para mulheres negras”, explica.
Dayana ainda lembra a importância de reconhecer o protagonismo de Marielle como mulher, sem compará-la com homens negros que também foram executados pela sua luta, como Martin Luther King e Malcolm X. “Marielle não é o novo Luther King, não é o novo Malcolm X, Marielle é Marielle Franco. Preta, favelada e sapatão, que saiu da Maré com todas as dificuldades que temos nesse território para acender para o mundo. O mundo hoje conhece Marielle. Então parem de colocá-la na sombra de outros homens”, enfatiza Dayana.
Ícone na luta
Para a artista plástica e grafiteira J. Lo Borges, 30 anos, ativista lésbica e moradora de Irajá, zona norte do Rio, Marielle trouxe um legado único para a luta lésbica no Rio. Para ela, a morte da vereadora deixou uma legião de órfãs. “Não se pode falar em movimento de lésbicas hoje sem falar de Marielle. Eu fico pensando, o que vai acontecer agora? Quem vai lutar assim para a gente? No dia que as meninas foram na Câmara defender o PL com a Marielle, elas foram vítimas de lesbofobia por parte daqueles homens héteros e brancos, mas Marielle segurou a onda, abraçou uma por uma depois da derrota, lembrando que nunca tínhamos chegado tão perto de aprovar algo exclusivo para pessoas LGBT”, conta.
Borges ainda lembra que o fato de uma mulher ser negra ou lésbica – ou as duas coisas – não necessariamente significa que ela vai saber representar as suas pautas na Câmara. Marielle era tudo isso e ainda sabia bem como defender as lutas no Legislativo. Além disso, a grafiteira destaca o quanto a vereadora levava a cabo a expressão “gente da gente” e era acessível. “Era uma mulher maravilhosa que levava as pautas de mulheres pretas, faveladas e de lésbicas, e sabíamos que, além da importância de ela estar lá, a gente conseguiria contatar ela. Quando a gente sentia que precisava de algo, sentávamos com ela e com as assessoras, sabíamos que tínhamos o apoio de uma pessoa séria”, relembra J. Lo.
Por ser uma mulher negra, lésbica e não feminina, J. Lo teme sofrer agressões, tanto de pessoas comuns como da polícia. “Ser um corpo lésbico e preto na rua, ainda mais no meu caso por não ser feminina, é estar o tempo todo esperando um soco ou um tiro. A polícia é muito cruel, direto me param e querem me revistar. Aí eu lembro da Luana Barbosa e fico sem reação”, desabafa.
A coragem de ser
A Ponte também conversou com mulheres negras e lésbicas de São Paulo. Para Dara Ribeiro, 38 anos, lésbica e mãe, assim como Marielle, a perda foi irreparável. “Ela era uma certeza de que eu e outras mulheres podemos ser. Nós perdemos porque ninguém, em anos, tentou como ela fazer tanto pela comunidade LGBT”, afirma. Dara afirma que os tiros dados em Marielle foram um recado para toda a militância. “Não mataram só ela, e sim todas nós, mulheres negras”, pondera.
Para a historiadora Larissa Ibúmi, 25 anos, que se declara uma mulher bissexual e também é mãe, mulheres lésbicas sofrem com a invisibilidade mesmo dentro do movimento LGBT+. Por essa razão, Larissa afirma que foi também uma morte simbólica. “Mesmo dentro dos movimentos LGBTQIs, sabemos que existe uma invisibilidade conferida às mulheres lésbicas. Perder Marielle é o resultado da não aceitação dos nossos corpos, da nossa sexualidade, das possibilidades de existir e resistir. Quem mandou executá-la sabe o que estava matando por trás dela. Obviamente não queremos mártires. Queremos nossos pares vivos”, diz.
Assim como as outras ativistas, Ibúmi conta que se sentiu atingida por um tiro quando recebeu a notícia da morte de Marielle. “Ela foi morta no Estácio, bairro historicamente negro, berço de uma vertente do samba, da intersecção de culturas diaspóricas, das casas das tias baianas, de herança que foi apagada pelo Estado racista e higienista. São muitas camadas. Há uma sequência de violências que bombardearam a memória de Marielle e da nossa dor”, desabafa.
Nascida e criada na periferia de Diadema, na Grande São Paulo, Ingrid Gabriela, 23 anos, conta que, embora tenha se descoberto lésbica muito cedo, por estar inserida em um contexto familiar muito tradicional, acabou conseguido manifestar plenamente essa identidade longe de casa. “Fui criada por uma avó branca e só fui saber que era negra quando fui colocada de lado por amiguinhos na escola. É complicado ser mulher, negra e lésbica, mas eu fico feliz de ocupar espaços masculinos, heteronormativos e brancos, e poder da minha forma desconstruir alguns conceitos e representar a minha comunidade onde eu estiver”.
*Reportagem atualizada às 12h52 do dia 29/3 para deixar claro que a militância de Marielle não se restringia à causa lésbica, mas a todo direito da população LGBT em geral
[…] desse ódio. “O que fez Marielle ser tão grande é o discurso em relação à negritude, à lesbianidade, à favela. Acrescenta-se a isso a uma estrutura patriarcal de inúmeras opressões. Marielle está […]