Intervenção federal não explica por que vítimas de incêndio no presídio Nelson Hungria só foram socorridas após fogo queimar 90% de seus corpos; em 2016, Defensoria apontou falta de extintores
Duas semanas após um incêndio em uma cela matar duas mulheres no presídio Nelson Hungria, em Bangu, a intervenção federal, responsável pelo sistema prisional do Rio, ainda não foi capaz de explicar como o socorro às vítimas só chegou após o fogo ter atingido 90% de seus corpos, naquele que deveria ser um dos espaços mais vigiados da capital fluminense.
Um relatório feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em 2016, havia apontado que faltava um programa de combate a incêndios no presídio.
Em 19 de abril, um incêndio atingiu uma cela de isolamento do presídio, onde estavam Yasmin Pires Pessanha, 21 anos, e Grazielle Gomes Antunes, 27. Ambas foram socorridas na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) no Complexo de Gericinó, em Bangu, e depois levadas ao Hospital Estadual Pedro II, onde morreram.
Yasmin e Grazielle chegaram ao hospital com mais de 90% do corpo queimado, em estado gravíssimo. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, Grazielle morreu no dia 24 e Yasmin, um dia depois.
A Seap (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária), subordinada ao Gabinete da Intervenção Federal da gestão Michel Temer (MDB), atribuiu o incêndio a um cigarro aceso, sem explicar como o cigarro entrou numa cela de isolamento, nem por que o presídio só conseguiu socorrer Yasmin e Grazielle quando já era tarde demais.
“Minha sobrinha não era bicho”
Segundo nota divulgada pela Seap, as duas internas “tiveram partes dos seus corpos queimados” após uma delas acender um cigarro, que teria acidentalmente incendiado um colchão. A mesma nota afirma que a versão teria sido relatada pelas próprias detentas. Só não esclarece como o presídio conseguiu colher o depoimento de presas com 90% do corpo queimado e de que forma esse procedimento se deu.
Além disso, a Secretaria Penitenciária informa que um técnico de câmeras de monitoramento verificou as imagens do circuito interno e que um perito criminal da Polícia Civil analisou o local para a elaboração de um laudo que irá “constatar a veracidade dos fatos contados pelas internas”. Outras informações não foram divulgadas por “questões de segurança”.
As mortes estão sendo investigadas pela Superintendência de Inteligência do Sistema Penitenciário (Sispen), pela Corregedoria da Seap e pela Polícia Civil. Procurados, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro afirmou que acompanha o caso, mas que não irá se manifestar, por ainda estar em apuração.
Uma tia de Yasmin, que prefere não se identificar, questiona a versão apresentada pelo governo. “Eu só queria saber como a causa do incêndio foi um cigarro acesso, sendo que no isolamento não entra nem cigarro e nem isqueiro. Como pode um colchão pegar fogo com uma guimba de cigarro e levar a vida de duas jovens? Minha sobrinha não era bicho não, era um ser humano, e a família pelo menos merece saber como que aconteceu isso”, disse.
Ouvida pela Ponte, uma egressa que ficou 9 anos presa afirma que é quase impossível entrar com cigarro e isqueiro no regime de castigo: “Você entra sem roupas e, só depois de estar lá dentro, jogam uma roupa pra você vestir e só abrem a porta de ferro para dar comida duas vezes ao dia”.
“Para mim, omitiram socorro”, afirma uma ex-detenta que passou 11 meses no mesmo presídio. “Mesmo que tivesse ocorrido um curto circuito ou algo assim, quem está na tranca [isolamento] tem como se comunicar com quem está na galeria D ou na galeria F. Dava tempo de quem estava fora do isolamento chamar a polícia antes de elas terem mais de 90% do corpo queimado”, expôs. Segundo ela, problemas com fiação exposta e sob riscos de curto circuito no Nelson Hungria eram constantes.
A reportagem não conseguiu entrar em contato com familiares de Grazielle. Parentes de Yasmin, que estiveram no IML (Instituto Médico Legal) de Campo Grande, para onde as duas vítimas foram levadas, ouviram o relato de que Grazielle era moradora de rua e ninguém havia procurado por ela. Ela havia sido presa por furto.
‘O rosto estava irreconhecível’
A reportagem acompanhou o enterro de Yasmin, na tarde do dia 28 de abril, no cemitério São João Batista, no Botafogo, zona sul. O corpo da jovem levou três dias para ser liberado. Parentes e amigos estiveram presentes para prestar homenagens, com flores e camisetas estampadas. Contaram que, ao ser presa, Yasmin tinha uma bebê de um mês e uma filha de dois anos, que acabaram ficando sob os cuidados da família. A menor precisa de cuidados especiais por ter nascido com o céu da boca aberto.
Órfã de pai e mãe e moradora da Rocinha, Yasmin era dona de casa e fazia o que podia para ajudar a cuidar também das duas irmãs mais novas. Foi presa acusada de porte ilegal de arma. Como não tinha condenação, tentava transformar sua prisão preventiva em domiciliar, com base no habeas corpus coletivo concedido pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em fevereiro, para gestantes e mulheres com filhos de até 12 anos ou com deficiência.
Uma familiar que esteve no IML disse que só conseguiu reconhecer a jovem por uma tatuagem no braço, com o nome da filha de Yasmin. “Deu pra perceber que não colocaram o corpo na geladeira, porque estava com um cheiro muito forte, muita mosca e muita gosma, disseram que lá estava lotado. O rosto estava irreconhecível e não tinha cabelo”.
O enterro foi custeado pela Associação de Moradores da Rocinha, após a família apresentar o atestado de pobreza. Foi o único apoio recebido pela família.
Masmorras femininas
Em 2016, um relatório da Defensoria Pública listava 38 recomendações para o presídio Nelson Hungria. Uma delas apontava justamente a necessidade de “implementação de programa de combate à incêndio com a colocação de extintores em toda a Unidade Prisional”. Fotos de fiação elétrica exposta, com risco iminente de choque e incêndio, fazem parte do registro.
O relatório aponta uma série de outros problemas, como banheiros inadequados, calor (a data de inspeção, a temperatura na área aberta em frente às celas marcava 41.1°C), superlotação e comida imprópria para o consumo. Também apontou que o banho de sol das presas frequentemente era suspenso por punições coletivas.
Uma ex-detenta, hoje com 40 anos, que já passou pelo Nelson Hungria, conta que conviveu com diversos maus tratos, os que ela sofreu e os que presenciou. “Tenho meu psicológico abalado até hoje, dois anos após ter saído”, conta. “A cadeia é uma podridão e tem duas frases que eu ouvia muito lá dentro das polícias: ‘nada é tão ruim que não possa piorar’ e ‘o direito da presa é tão ter direito nenhum’.”
Há cada vez mais mulheres atrás das grades no Brasil. Segundo estudo publicado em 2014 pelo Infopen, relatório elaborado pelo Departamento Penitenciário Nacional, entre 2000 e 2014 o aumento da população feminina foi de 567,4%, enquanto a média de crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220,20%. Destas, 68% eram negras.
O perfil das mulheres encarceradas tem muitos pontos em comum com o de Yasmin. Em geral, são jovens pobres e negras, responsáveis pelo sustento familiar, que possuem filhos e exerciam trabalho informal. Além de todas as violências e precariedades enfrentadas nas prisões masculinas, nos cárceres femininos essa situação é agravada por opressões de gênero:ausência de materiais de uso pessoal e de roupas íntimas, poucos visitantes cadastrados, péssimo atendimento à saúde das gestantes, lactantes e mães; separação abrupta das mães e seus/suas filhos/as; falta de notícias dos/as filhos/as, entre outra série de arbitrariedades.