O filho se envolveu com drogas, passou por duas internações na Fundação Casa e, mais adulto, acabou preso. Railda foi para a luta e criou associação que dá apoio às famílias de detentos
Maria Railda Alves, de 52 anos, destranca a porta com um sorriso. É uma quarta-feira ensolarada, no bairro José Bonifácio, extremo leste de São Paulo, formado por conjuntos habitacionais. A sala tem quadros, micro-ondas, cadeiras, mesas, lousas para anotações das reuniões com as visitas marcadas. Essa é a sede da Amparar, uma associação que Railda ajudou a fundar em 2006 anos e que presta apoio às famílias de pessoas que estão no sistema prisional. A história da luta contra os abusos do sistema socioeducativo e prisional se mistura com a da própria vida dela: ela começou na militância por causa de um dos filhos, Daniel, dependente químico que passou por duas internações na antiga Febem – atual Fundação Casa – e quando adulto foi preso. Hoje vive entre momento de abstinência e recaídas.
“Comemorar o que no dia das mães com o filho preso? Eu gosto de ir na casa onde não tem filho, que não vai falar de mãe. Eu não era assim, sabia? Eu gostava de Natal, por exemplo. Gostava de ficar no fogão, fazer comida, essas coisas. Hoje não tem mais gás para isso”, lamenta.
Ela costuma arrumar o espaço onde a associação está sediada com todo carinho, todos os dias, para receber outras mulheres, oferecendo café, água, um lugar para se sentarem. É um espaço construído e frequentado por várias mãos, como as desenhadas no grafite que estampa a fachada: entrelaçadas num fundo com grades. São mãos que ainda podem abraçar os filhos, mas não como antes. “Às vezes eu me frustro, não vou mentir não, mas a gente se apoia uma na outra”, conta.
Um rapaz aparece na janela para avisar. Outra recaída. “Às vezes eu também não tenho o direito de abraçar o meu filho porque o Estado me podou. Por ter filho preso, dependente químico, a gente também tem perdas. Isso dói dentro de você”, desabafa. “Você não pode sentar numa mesa de manhã para tomar um café com seu filho. Aí também tem aquela sensação de ‘será que está vivo? será que vai voltar pra casa? será que vai estar preso?’. Aí, se está na cadeia, você não sabe se vai estar morto ou vai estar vivo. Todo mundo é vítima nesse contexto”.
Foi na porta da extinta Febem (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor), atual Fundação Casa, que Railda conheceu mães como ela, de quem nunca mais se separou. Foram elas, em 1998, que tomaram a linha de frente para denunciar as violações que os filhos internados sofriam nas unidades, que iam desde a agressões físicas a privação de atendimento adequado.
As marcas do período não ficaram apenas nos corpos, nos esforços do percurso da unidade até o Fórum Criminal da Barra Funda para procurar assistência jurídica, para buscar amparo psicológico, mas também no retorno dos adolescentes às suas famílias. “Ele perdeu a identidade. Eu já não reconhecia mais o meu filho. Quando ele chegou em casa, ele olhou como se tivesse entrando num lugar estranho que não é dele. Até os primeiros dias pra ele dormir foi muito difícil de se adaptar. Ele acordava assustado, gritava, porque foi um tempo de muita rebelião”, recorda. “Eles saem da cadeia, mas a cadeia não sai deles”.
Railda costumava reunir os quatro filhos para almoçar juntos no domingo, ir à igreja, ir à feira. Com as mãos, ela sinaliza um puxãozinho na orelha para mostrar um costume que as crianças tinham em fazer de brincadeira, coçando a cabeça e a perna. “A gente deitava no domingo para assistir televisão e ficava conversando. Levantava, fazia uma pipoca, comia e tinha uma vida como qualquer outra pessoa, como uma família”.
Não demorou muito para que meninos como o de Railda também passassem pelo sistema prisional. O desrespeito com os familiares, com as revistas vexatórias, o tratamento dado aos presos e presas fizeram com que ela e aquelas mesmas mães fundassem a Amparar, em 2006, para suprir uma lacuna de cuidado que elas mesmas sentiam. “Nesse processo você fica totalmente sozinha. Não tem ninguém que nos assista, que nos ouça. Pra você conseguir ir num psicólogo num posto de saúde, você leva meses. Como a gente teve famílias que foram procurar atendimento, com casos muito delicados, elas chegavam no posto [e o atendimento] se fazia em grupo”.
A união daquelas mulheres, para ela, era uma questão óbvia. “Quem gera é a mãe. Quem pare, é ela. Quem sente todas as emoções é ela. Qual o papel do pai? Ele trabalhar e por as coisas dentro de casa. Ele sente também, não vou dizer para você que não, eu já vi pai chorar aqui dentro. Mas esse processo quem mais carrega são as mulheres”.
E são mulheres que Railda tem como principal referência quando, aos cinco anos, ela, as irmãs, a mãe e a avó saíram de Coaraci, uma cidade pequena no sul da Bahia, para a zona leste da capital paulista, “como o sonho de qualquer baiano”, conta. Enquanto a mãe dela, dona Edite, trabalhava em casa de família e como faxineira em hospital, a avó cuidava dela.
Ia à escola e aos 12 anos já começou a ganhar o próprio dinheiro porque gostava de duas coisas: maçã verde e era “danada para trabalhar”. “Eu lembro que eu estudava de manhã, chegava em casa, deixava meu material, aí eu ia para a fábrica fazer as flores, colocava o negócio lá quente, sabe? Essas fabriquinha de flores artificiais de pano num fundo de quintal lá no Carrão. Depois montava, era muito lindo. Ficava das 13h às 18h para ganhar o que seria hoje uns R$ 200”, relembra aos risos.
Sonhava em cursar uma faculdade de Direito desde pequena porque se encantava com as becas que via na televisão. “Achava que o Direito era tudo na vida do ser humano”. Mas os estudos foram interrompidos quando se casou aos 16 anos, na igreja evangélica, e logo depois teve o primeiro filho. Guarda consigo o desejo de ainda voltar à universidade para, pelo menos, ter um diploma. “Mas não quero atuar não. É só pra concluir mesmo, terminar o que comecei”, diz.
Vítima de violência doméstica, chegou a ser estuprada pelo marido e ficou grávida. “A filha do meio minha é fruto de um estupro. Pelo próprio pai dela”, conta, emocionada. “Quando eu tive minha última filha, a caçula, eu não aguentava mais, as pessoas perguntavam por que meu olho estava roxo, as marcas no corpo e aí eu falei ‘chega! não quero mais’. Nesse dia me lembro que ele me bateu muito”.
Railda foi tocar a vida, trabalhou, deu oportunidade para que os filhos estudassem. “Minha filha se envolveu com drogas também, mas não me deu tanto trabalho quanto o Daniel. Você esquece dos outros filhos, você só cuida desse [Daniel]. Não é porque você gosta mais de um, você ama todos iguais, mas um precisa de mais cuidado”, analisa.
“Mãe sempre tem esperança. Mãe é o bicho mais besta que tem. às vezes o homem xinga de vagabunda. Mãe é puta de filho, Ele pode fazer o que for pra ela, mas ela sempre vai abraçar, sempre vai perdoar. Eu tenho esperança, sim, que um dia ele mude”, afirma Railda ao contar o que a motiva a seguir na luta.
“Foi muito sofrida minha vida. Foi uma paulada em cima da outra, quando você pensa que está bem você nao esta bem. Mas você não pode parar, não da para ficar se vitimizando. Você tem que tentar esquecer o passado e tentar viver. Eu acredito que tem um ser especial que olha por você, que zela por você, eu acredito em Deus e é isso”, conclui.