Lei sancionada pelo presidente em outubro de 2017 passa à Justiça Militar casos de mortes provocadas por militares das Forças Armadas em serviço; especialistas divergem se PMs podem ser incluídos na mudança
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Diego Augusto Ferreira, de 25 anos, estava em sua moto quando viu uma blitz do Exército em Magalhães Bastos, zona oeste do Rio de Janeiro. Ele decidiu furar o bloqueio por não ter habilitação. A tentativa falhou quando um militar – que não teve o nome divulgado – atirou e feriu fatalmente Diego, que se tornou a primeira vítima civil das Forças Armadas desde o início da intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro. Serão militares – e não a Justiça comum – os responsáveis pela apuração e julgamento de casos desse tipo, após lei sancionada pelo presidente Michel Temer (MDB) no ano passado.
Em 16 de outubro de 2017, o presidente sancionou a Lei 13.491/2017, que transfere para a Justiça Militar o julgamento de um militar das Forças Armadas que, em serviço, mate um civil. Essa mudança é válida em ações definidas pelo presidente ou ministro da Defesa, que tratem da segurança da instituição militar ou, então, durante a GLO (Garantia da Lei e da Ordem), largamente utilizada em vários momentos anteriores à intervenção.
O caso de Diego se enquadrará na nova lei, bem como o de militares do Exército envolvidos em uma ação que resultou na morte de oito pessoas no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, em novembro do ano passado. Segundo a ONG Human Rights Watch, o Exército impediu que os 17 homens apontados como suspeito de envolvimento prestassem depoimento nas investigações do MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro). O general Walter Braga Netto negou entregar para o MP-RJ as declarações feitas pelos militares ao MPM (Ministério Público Militar).
Há um embate jurídico quanto a mudança na lei. “Não vejo problema em [o julgamento] ir para a Justiça Militar. Algumas ilações tem sido feitas, de que a militar não tem isenção, mas isso é bobagem”, analisa o coronel da reserva da PM de SP e ex-secretário nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva Filho. “O policial federal se envolve em uma ocorrência, quem faz a averiguação? A Polícia Federal. Um policial civil, a Civil… Não tem problema fazer inquérito. Por outro lado, justiça é justiça, não se pode desconfiar de que seja parcial”, analisa.
Para Silva Filho, a ação do soldado das Forças Armadas no caso de Diego Augusto Ferreira se configura como um “homicídio”. “Qualquer pessoa que desobedeça o sinal de parada, não pode ser alvo de tiro de forma alguma. Não configura uma típica ação de legítima defesa. Aparentemente, o militar cometeu um grave erro e dessa forma um crime. Vai ser apurado em inquérito em os todos detalhes”, diz, também imputando responsabilidade nos superiores por não orientar devidamente a tropa a como agir em casos como este.
Enquanto o ex-secretário considera normal e dentro do esperado o julgamento de um militar ser feito por outros militares, a desembargadora Ivana David avalia a lei como uma exceção. “Como crime julgado na Justiça comum, não se justifica uma exceção dessas. Então, se seleciona isso para a intervenção, é uma exceção da exceção para justificar um serviço excepcional. O militar não deveria fazer essa função da PM e, para validar, excepciona a Justiça, põe um ordenamento jurídico que nem o PM tem”, argumenta a desembargadora.
A magistrada atua há quase 30 anos na área criminal da Justiça de São Paulo. Para ela, é preciso fazer com que os militares tenham a mesma responsabilidade quando atuarem como PMs ou policiais civis, seja na hora de prender uma pessoa, investigar ou responder por erros cometidos.
Forças Armadas na Vila Joaniza, Ilha do Governador | Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
“Quem se propõe a fazer a função que não é sua tem que ter todas as regras, as benesses e as ruins. A parte boa ele tem, que é a função, poder abordar, prender, mas no momento em que tem que prestar contas da função que exerceu fora dos trâmites da lei, quer ser tratado de forma diferente? A título do que?”, pontua. “A intervenção que precisa se adequar ao estado de direito. Esse é um caminho inverso que estão tomado”, continua.
PMs tentam ‘entrar na onda’
A mudança na lei específica para “militares das Forças Armadas” criou uma discussão jurídica envolvendo as Polícias Militares. Afinal, o termo “militar” também os engloba nessa mudança definida por Michel Temer ou não? Novamente, há posições diferentes quanto à resposta para se um PM que matar um civil durante o trabalho deve ser julgado na Justiça Militar ou comum.
“Não encontra respaldo na lei. O próprio Raul Jungmann [ministro extraordinário da Segurança Pública e ex-ministro da Defesa] deu declaração por escrito explicando que essa lei não se aplica aos PMs, seus julgamentos são na Justiça comum por uma questão de competência. Porque o interesse de ser julgado de modo excepcional em uma democracia?”, questiona a desembargadora Ivana David, pontuando que existem apenas cinco TJMs (Tribunais de Justiça Militar) no país (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Distrito Federal e Rio Grande do Sul).
“Custo e luto contra a exceção romper com todos os 30 anos de democracia que estamos vivendo. Acredito que não consegue fazer jurisprudência”, analisa, considerando que na Justiça comum tem mais chance de o policial não ser condenado e, em caso de sentença, a possibilidade de transição de pena.
Corregedor da PM de São Paulo, o coronel Marcelino Fernandes discorda do posicionamento da desembargadora. Para ele, a própria Constituição é quem respalda que, com a mudança na lei, os julgamentos de PMs saiam dos júris populares e vão aos TJMs. “Todos os crimes cometidos em razão da função são crimes militares e é válido para todas as PMs. Esta mudança no código atinge artigo 42 Constituição”, sustenta.
O texto do artigo 42 diz que “Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”. Assim, Fernandes considera válido para os PMs a mudança na lei 13.491/2017, que, em sua escrita, trata sobre os crimes, “quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União”.