Denúncia traz à tona o limite entre liberdade de expressão e propagação de conceitos racistas no curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu, em São Paulo
Há pelo menos um ano, o Coletivo Enegrecer vem recebendo denúncias sobre o conteúdo da aulas de uma professora do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu (USJT). No ano passado, o grupo falou com a coordenação do curso, mas não recebeu nenhuma resposta da universidade. A ausência de posicionamento fez com que o Coletivo divulgasse uma nota de repúdio.
A estudante do 5º semestre de Psicologia, Kezia Silva Castro, de 21 anos, relata que as falas discriminatórias da professora Maria Esmeralda Mineu Zamlutti eram frequentes. “Eu tive aula com essa professora nos meus dois primeiros anos de faculdade, em 2016 e 2017. Desde o meu primeiro ano, ela já reproduzia as mesmas falas racistas e discursos homofóbicos e machistas. São discursos que ela carrega há muito tempo e acaba atingindo diretamente a gente, acaba violentando diretamente a gente”, conta.
Henrique Santos, 25 anos, do 6º semestre do curso de Psicologia, que teve aulas com a professora em 2015 e 2016, expôs com detalhes, em entrevista à Ponte, os discursos discriminatórios da professora. “Ela falava que havia uma miscigenação pacífica em que negros e brancos conviviam graças a essa troca de códigos genéticos. Assim, os filhos, que ela chamava de ‘mulatos’ e ‘moreninhos’, viviam em paz, portanto o racismo não existia. Ela dizia isso ‘não existe mais racismo nos dias de hoje’, porque você via o negro fazendo todas as coisas que ele era impedido de fazer anteriormente”, conta.
A temática da relação entre mulher negra e os estupros cometidos na época da escravidão era outro assunto discutido em sala de aula. “Eu presenciei a esterotipação da minha raça, principalmente da hipersexualização do corpo da mulher negra. Ela falava que a mulher negra era sensual e que ela já tinha uma sexualização natural, aquela coisa da carne, e que, quando o europeu veio para cá. Ele, que estava acostumado com as brancas que não tinham a mesma sexualidade, olhou para as negras e as desejaram. Então, quando aconteciam os estupros e nasciam os filhos dessa miscigenação, ela falava que era natural, afinal de contas a mulher negra tinha a sua sexualidade. Ela hipersexualizada uma mulher e justificava uma série de estupros e assassinatos para com a raça negra, para com a mulher negra”, menciona Henrique.
Um possível traço autoritário da docente também era perceptível para os seus alunos. “Alguns alunos se manifestavam e chamavam ela depois das aulas para conversar, mas não surtia efeito. Por mais que a gente tentasse não era bem aceito. Ela atuava de maneira bem autoritária, ela desprezava muito o interlocutor”, conta Santos.
“As aulas dela eram assim, ela mandava por e-mail um texto pra gente, um texto dela. Aí ela direcionava as discussões na sala e aí ela começava a discussão. Só que ela que conduzia a discussão e, se alguém falasse alguma coisa que ela não concordasse, ela já silenciava a pessoa e passava para uma pessoa que ela já sabia o que ia falar”, relata Kezia.
Depois da nota de repúdio do Coletivo Enegrecer, um ex-professor da USJT realizou publicações em defesa da docente acusada de racismo. Na postagem, Fabio Ulanin chama os alunos do Coletivo de ‘negros nazistas’. “Acontece que na Universidade São Judas os alunos criaram um tal ‘Coletivo Negro’, seja lá que diabos signifique isso. Dizem que lutam pela valorização do negro, o que é mentira: lutam para que os negros permaneçam excluídos e inferiorizados frente a qualquer outro grupo social. Criaram um gueto e querem viver no gueto e ai daquele que criticar o gueto”, diz a postagem do psicólogo.
A postagem foi recebida com um misto de tristeza e revolta pelos alunos. “A sensação de ler a declarações do professor Fábio e de quem concordava com ele é a mesma sensação de quando a gente ouve aquela professora falar na sala de aula. É inacreditável que em 2018 as pessoas ainda pensem dessa forma. Dá medo de saber que, só de você existir, as pessoas já se incomodam. Elas se incomodam de você ocupar determinados espaços e farão de tudo para você não estar ali. A sensação é de tristeza, mas também de força, porque você sabe que tem que lutar para que tudo isso acabe”, desabafa Kezia.
“Foi bastante difícil observar as opiniões dele. A gente basicamente exigiu respeito, exigiu posicionamento da universidade por conta de uma docente que estava fazendo um desserviço. E aí o professor fala uma besteira daquele e isso é revoltante. Pior é ver que, dentre os seguidores dele, ele encontra bastante voz, voz que ecoa esse discurso absurdo. A sensação é de tristeza, de achar que eu estudo para fazer parte do mesmo cenário profissional desse indivíduo”, afirma Henrique.
Pelo menos três alunos ligados ao Coletivo Enegrecer fizeram um boletim de ocorrência contra a professora Maria Esmeraldo Mineu Zamlutti por “praticar discriminação”, conforme o artigo 20 da Lei de Crime Racial (7716/89).
Liberdade de expressão ou discurso de ódio?
Em entrevista à Ponte, o professor da ECA/USP Dennis Oliveira explica que a liberdade de expressão dentro e fora das salas de aula precisa preservar os direitos humanos, uma vez que “o direito à liberdade de expressão não pode ser absolutizado”. “Se a gente observar que ele é um direito humano e também entre os direitos humanos você tem direitos de garantia a vida, direito contra a discriminação, você não pode invocar um direito humano, como a liberdade de expressão, para atacar outro direito humano, que é o direito à humanidade. Nesse sentido, invocar o direito de liberdade de expressão para atacar o outro, para agredir, para ter uma narrativa racista e preconceituosa, machista e homofóbica, não é plausível, não é possível. É aquela velha frase: o direito de uma pessoa vai até o limite de outra pessoa”, defende.
Maria Sylvia de Oliveira, advogada e presidente do Geledés, Instituto da Mulher Negra, alerta que, juridicamente, as falas da professora não podem ser enquadradas como racismo, mas pondera que uma inadequação da professora ao trabalhar o tema. “Do ponto de vista jurídico, não creio que a gente possa enquadrar isso como racismo. De certa forma ela está sendo racista, mas ela está sendo racista dentro do desconhecimento e despreparo para essa disciplina. Podemos avaliar, por exemplo, que ela não tem competência ou condições simplesmente porque ela não entende nada de história. Se a referência dela é Gilberto Freyre, ela deveria se atualizar e mudar o referencial teórico dela”, explica. “O que eu percebi das falas dessa professora é despreparo, desconhecimento, e isso é grave. Sendo ela professora e sendo ela professora de uma universidade, isso é inadmissível”, critica Maria Sylvia.
Uma das críticas atribuídas à professora é a adoção unilateral de autores como Gilberto Freyre em sua base teórica. Para Dennis, o autor deve ser discutido em sala de aula, mas com contexto e desde que desperte visão crítica, não como uma versão única a ser propagada. “É evidente que ele tem uma postura racista, preconceituosa e fundamenta esse racismo. E é importante estudar Gilberto Freyre, mas de uma forma aprofundada e crítica para entender de que forma as suas ideias consolidaram no Brasil um pensamento de que o racismo não é problema, ou de que você não tem um preconceito racial de forma mais evidente. Tem que ser estudado sim, mas estudado de uma forma crítica, não de uma forma meramente lírica ou eufemística, como alguns autores colocam”, ressalta o professor.
Para a Ponte, Maria Sylvia reforça que, apesar de não poder ser enquadrado no crime de racismo, as declarações e mesmo a postura da professora diante do contraditória trazido por alunos evidenciam marcas de racismo estrutural e institucional. “É racismo estrutural na medida que essa professora, baseada no aprendizado que ela teve, não procura outra literatura se não a que foi apresentada para ela, no caso do Gilberto Freyre. Então, nesse sentido, o racismo é estrutural, porque é a forma como a sociedade e os outros professores veem a questão racial e questão das mulheres negras e indígenas nesse período histórico que ela estava comentando”. A advogada também aponta que o caso explicita um racismo institucional na medida em que uma coordenadora, na função de responsável, inclusive pedagógica, do curso tem notícia da situação e se exime de qualquer resolução. “Ela sabe que essa professora não tem capacidade para dar aula, e ela não faz nada. Assim ela propaganda e incentiva o mal funcionamento de uma instituição, no caso uma instituição privada, para essas alunas e alunos negros que frequentam essa universidade”, explica Maria Sylvia.
Histórico de casos de racismo
Geovanni Vieira, 25 anos, integrante do Coletivo Enegrecer e aluno do curso de Direito, defende que não é a primeira vez que o nome da São Judas é ligado diretamente a casos de racismo. “As recentes denúncias de racismo não são casos isolados. Ano após a ano, surge um caso e a forma como a universidade lida com isso tem se mostrado ineficaz. É preciso que, além de um coletivo negro para apontar, propor debates e reflexões, a própria faculdade reconheça que este é um problema institucional e, assim, se debruce sobre essa realidade que ela tem insistido em ignorar.”
A Universidade São Judas teve em sua história outros casos de racismo. Em 2016, uma aluna do curso de Direito postou uma declaração racista em relação aos usuários da linha Vermelha do metrô. “Nada contra, mas na estação do Brás abrem a porta da senzala, sou o contraste do vagão!”, dizia a postagem.
No mesmo ano, um professor do curso de comunicação realizou, por meio de redes sociais, declarações de intolerância contra políticas afirmativas em referência à trajetória da judoca Rafaela Silva, negra, lésbica e periférica, que “nunca precisou do feminismo ou de cotas, conquistou tudo por mérito próprio”.
Uma fonte que preferiu não se identificar contou à reportagem que a Universidade São Judas, em pareceria com o CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola), está organizando uma excursão ao ‘Painel WW’ webprograma do jornalista William Waack, demitido da Rede Globo depois do vazamento de um vídeo com conteúdo racista. O e-mail enviado pela universidade dizia que os primeiros 15 alunos que manifestassem interesse participariam do evento. Em resposta a este e-mail, o Coletivo Enegrecer se posicionou de maneira contrária à excursão.
Outro lado
Procurada pela Ponte, por meio da assessoria de imprensa, a Universidade São Judas informou que não tolera qualquer tipo de discriminação em suas instalações e trabalha, diariamente, pela construção de espaços inclusivos e respeitosos para todas as pessoas, além de apoiar e se orgulhar da diversidade que abraça. A instituição também alega que, desde 2017, se reúne regulamente com os coletivos para pensar em conjunto em soluções que façam a universidade cada vez mais segura.
Sobre a denúncia do Coletivo Enegrecer, a USJT informa que “a Comissão de Inquérito Disciplinar Interna já foi instaurada e terá o apoio do Comitê de Ética para investigar o caso denunciado pelo coletivo Enegrecer. Iremos seguir o Código de Conduta e disposições legais a respeito, sempre obedecendo ao contraditório e a ampla defesa, na qual todas as partes envolvidas serão ouvidas a fim de definir a melhor solução”.
A assessoria da universidade comunicou, ainda, que “o inquérito disciplinar foi aberto e segue em sigilo. Somente quem está na banca tem acesso ao andamento do processo e, essa banca, conta com um representante indicado pelo Coletivo Enegrecer. Além disso, durante o Simpósio de Saúde da São Judas, aconteceram três palestras do Coletivo ao longo da programação, com foco em saúde. O que demonstra que Universidade e representantes do Enegrecer estão andando juntos”. Em contrapartida, o Coletivo garante que a Universidade só deu espaço para uma palestra na semana da saúde, no dia 22/5, intitulada “Cuidado e bem-estar em saúde da população negra”. Procurada pela Ponte, a São Judas informou que o inquérito permanece em sigilo.
A professora foi procurada pela reportagem, mas, até o momento de publicação da matéria, não houve retorno.