Álbum está, agora, ao lado de diário de Carolina Maria de Jesus, incluído no ano passado; para pesquisadora, obra quebra ‘privilégio do cânone literário, quase sempre de autoria branca’
“É a periferia ocupando a academia”. Com essa frase o grupo Racionais comemorou a inclusão do álbum “Sobrevivendo no Inferno” na lista de obras obrigatórias para o vestibular da Unicamp, a partir do ano que vem. Nas redes sociais, KL Jay chegou a dizer que o trabalho “é uma aula de história”. O poeta Sérgio Vaz usou a conta do Instagram para replicar a notícia e, na mesma linha do DJ, escreveu que o disco “por si só já é uma universidade”. O escritor da periferia da zona sul de São Paulo lembrou que gerações da juventude negra e periférica se formaram ouvindo o som dos Racionais. “Por causa desse disco muita gente se graduou em auto estima e não entrou para a faculdade do crime. Agora é a vez de a academia estudar a história de milhões de brasileiros e brasileiras tratados de forma nada poética nesse país”, concluiu.
A obra musical, a primeira a constar em listas de vestibulares, foi incluída na categoria “Poesia” e se soma a outra obra de valor semelhante para a representatividade negra e periférica: “Quarto de despejo – diário de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus, incluída na categoria “Diário”, no ano passado. Para Fernanda Miranda, pesquisadora e doutoranda em letras pela USP, a presença dessas obras na lista do vestibular de uma das maiores universidades públicas do país é um passo importante na disputa por reconhecimento de trabalhos à margem do cânone literário, dominado por autores brancos. “Além disso, reconhece a disputa em torno do pertencimento dessas obras ao campo literário, em suas estéticas próprias. Pensando na lista como uma instância de legitimação literária, a presença dessas obras faz – ao menos em teoria – com que sejam estudadas observando sua complexidade”, explica.
Fernanda observa que Carolina de Jesus já tem aparecido em listas de vestibulares Brasil afora e destaca ineditismo da obra musical como literatura. “Como sabemos, o rap (sigla de ritmo e poesia, em inglês), pelo seu lugar de fala, pelos conteúdos contestatórios, pela autoria negra periférica, e a enunciação desse lugar de experiência, foi historicamente marginalizado enquanto produto artístico pelas instâncias legitimadoras da arte, localizadas da ponte pra lá”, afirma.
Para o arte educador da Afroeducação Diego Balbino, de 34 anos, o álbum é duplamente poético: na escrita e na vivência. “É o reconhecimento do letramento da galera da periferia, o dialeto do gueto como uma linguagem importante academicamente e que, um dia, foi vista como ‘falar errado’. É reconhecer o ‘é nóis que tá’, por exemplo, como expressão legítima”, diz. “A diferença dos Racionais para Carolina é que Racionais caiu na quebrada antes de cair no vestibular. Carolina é uma escritora periférica, só que estudada por acadêmicos. Carolina foi estudada para ser vivida; Racionais foi vivido pra depois ser estudado”, compara.
Natural do ABC e morador da zona norte de São Paulo, o arte-educador acredita que o efeito simbólico da inclusão do álbum na lista preparatório de um exame para ingresso no ensino superior pode ser comparado a política de cotas. “A periferia sempre viveu o nego drama, sabendo o que é estar da ponte pra cá. É aquela história do ‘você ta na cota, mas manja de Racionais? A gente é da geração da fitinha que voltava pra trás para decorar as lestras das músicas. Dissertar Racionais vai pegar mais pesado pra galera que esta na academia e eu acho muito bom”, conclui Diego Balbino.
Genocídio negro em pauta
De acordo com o professor Rogê Carnaval, da área de humanas do cursinho Maximize, de São Paulo, a inclusão foi uma “surpresa positiva” para a prova. “O ‘Sobrevivendo no Inferno’ é uma obra de altíssimo valor literário, mas o reconhecimento eleva o patamar”, afirma.
Segundo Rogê, a produção cultural do grupo é de “extrema relevância” e o fato de ela ser cobrada em um vestibular faz com que ela seja reconhecida como valiosa, assim como obras de Machado de Assis e Guimarães Rosa, por exemplo. “O que os Racionais faz é poesia tanto quanto Chico Buarque e Tom Jobim. A gente tem que romper com a ideia ultrapassada de que existe uma cultura de massa e uma cultura erudita, e que a cultura erudita vale mais.”
O professor também considera que a obra, para além do valor poético, tem “uma questão estética e social importante” e que precisa ser observada pelos vestibulandos. “É um retrato de uma sociedade violenta, racista e que marginaliza o negro e periférico”, considera. Segundo ele, é preciso que o genocídio da população negra seja debatido: “É uma realidade que insiste em permanecer no Brasil e todo movimento que cutuca uma ferida é importante.”
Nessa mesma linha, a pesquisadora da USP Fernanda Miranda aponta para o fato de que os temas tratados nas obras representam, de certa forma, um pré-requisito para que o candidato ocupe uma vaga na universidade pública. “Um recorte que não privilegia exclusivamente obras canônicas, quase sempre de autoria branca, que reproduzem lugares de poder na ordem discursiva, mas que garante a presença de vozes enunciativas plurais, de autores que apontam para experiências e processos sociais/políticos/históricos narrados desde os seus pontos de vista – da mulher negra, do homem negro, da periferia – forjando estéticas insubmissas”, explica.