O youtuber Arthur do Val falha miseravelmente ao analisar o ‘Sobrevivendo no Inferno’ do Racionais MC’s
Na semana passada, o youtuber (se é que dá pra chamar ele disso) Arthur do Val, conhecido pelo seu canal Mamãe, Falei — aquele cara que costuma ir a manifestações de esquerda e encontrar candidatos mais progressistas e forçar uma barra para um possível xingamento ou agressão — fez um vídeo putaraço da vida com o fato do disco Sobrevivendo no Inferno, do Racionais MC’s, entrar na lista de obras obrigatórias no vestibular da Unicamp a partir de 2020.
Ele, que preferiu o Quebra-Cabeça do Gabriel, o Pensador ao disco do Racionais no amigo secreto de 1997 (isso diz muito sobre o seu conhecimento de rap), decidiu interpretar a obra que afirma ser, em suas educadas palavras, “uma bosta”. Até aí tudo bem. Como diria o Mano Brown, quem tem boca fala o que quer pra ter nome. O jogo é esse mesmo e talvez eu nem devesse dar ouvidos a um homem adulto que é conhecido pela alcunha de Mamãe, Falei.
Devo ter alguma empatia e entender que deve ser realmente muito difícil para quem tem dinheiro ter que ouvir, interpretar e analisar uma obra de quatro pretos de quebrada lançada há 21 anos. Deve ser realmente muito difícil ter que ouvir a história do Guina ou o diário de um detento do Carandiru para passar no vestibular de medicina ou engenharia quando se tenta ignorar as vidas periféricas. Este é um sapão maior do que aquele da Fiesp que muita gente não está digerindo muito bem.
Mas tem uma questão. Se o Mamãe, Falei (nunca vou me acostumar a chamar uma pessoa adulta assim) fizesse o vestibular da Unicamp, ele tiraria uma péssima nota. Ao ver seu vídeo argumentando sobre a obra me veio aquele vídeo do Caetano no Vox Populi em 1978. Ele, por exemplo, interpretou o “tomar geral” do trecho “Bacharel, pós-graduado em tomar geral” como assalto. Ele diz, exatamente no minuto 4:37 do vídeo que “Tomar geral, pra quem não entendeu, é assaltar”.
Aí fica muito difícil passar na prova, amigão. Mas vou te ajudar. “Tomar geral”, neste caso e na maioria das vezes em que esta frase é dita, significa ser abordado pela Polícia, aquela mesma que é mais violenta nas quebradas e que mata mais gente preta do que branca no Brasil. A mesma que admitiu no fim do ano passado que a abordagem é diferente nas periferias do que em bairros nobres como Jardins, por exemplo.
Ele tenta, com uma argumentação rasa, mal feita ou leviana, desconstruir uma obra dizendo que ela é uma “bosta” ou que é contra ter este conteúdo na “faculdade que eu pago pro futuro dos meus filhos” (não vou entrar nem no mérito da Unicamp ser uma universidade pública e de que todos nós pagamos, não só ele). E novamente a frase do Caetano fica martelando aqui nas ideias.
O problema talvez seja a complexidade da obra, porque o Sobrevivendo no Inferno é muito mais profundo, vasto e denso do que muitos livros que fomos obrigados a ler para provas que bizarramente privilegiam os mais abastados. Sérgio Vaz é tão bom quanto outros poetas que vocês adoram chamar de gênio e também deve ser difícil analisar sua complexidade. Mas este sapão tá na sua garganta e não há o que fazer (talvez tentem embargar, mas ainda não tem o que fazer).
Em um momento do vídeo o Arthur do Val fala que estamos em guerra. Realmente estamos e este disco fala sobre isso. Estamos em guerra e quem morre está nas bordas, nos subúrbios e tem características bem específicas e convive com as drogas, com a criminalidade e as abordagens abusivas da polícia.
Um homem adulto que quer ser chamado de Mamãe, Falei e não consegue interpretar o mais básico sobre uma periferia nunca vai entender a complexidade de uma obra tão profunda quanto o Sobrevivendo no Inferno. Um disco que deu perspectiva para as quebradas. Quando o disco saiu eu tinha 11 anos, mas eu já entendia a ironia e inconscientemente entendia que as pessoas que cresciam ao meu lado, principalmente as negras, tinham alvos nas costas. Entendi com 11 anos que aquele disco caminharia comigo ao longo dos anos — neste momento o vinil está aqui rodando Fórmula Mágica da Paz. Imagina o Arthur do Val sentadinho na carteira durante a prova da Unicamp (feita com o papel que ele fará questão de dizer que pagou) e lendo “Pode vir Gambé, paga pau, tô na minha na moral na maior / Sem Goró, sem pacau, sem pó”? Ia bugar. Se ele não sabe o que é tomar geral, isso aqui é mais difícil do que Guimarães Rosa. Mas é assim que funciona, Mamãe, Falei. A polícia te para, porque você tem a pele escura, porque você está na periferia.
Deve ser muito difícil compreender a complexidade da letra de Mágico de Oz e entender como uma pessoa pobre pode começar a usar drogas ou avaliar frases como “Quem confia em polícia? Eu não sou louco”. Deve ser muito difícil ler Diário de um Detento, um dos poemas contemporâneos mais ricos do mundo. Deve ser muito difícil entender o mundo quando se olha para as quebradas como se estivesse em um safári ou achar lindo ver gente pobre só nas fotos do Sebastião Salgado.
Periferia é periferia (em qualquer lugar) e passou da hora de um vestibular entender isso e olhar para isso. E essa é uma das obras periféricas que precisavam ser obrigatórias nos vestibulares. Se você, Arthur do Val, tivesse lido Carolina de Jesus, Josmar Jozino, Ferréz, Sérgio Vaz, Rodrigo Ciríaco talvez fosse menos preconceituoso e tivesse mais conhecimento sobre como as pessoas vivem fora do seu universo.
Alguém tem que dizer para sua mãe que você falou, mas falou muita bosta neste vídeo.
(*) Peu Araújo é jornalista formado pela primeira turma do Prouni. Em 13 anos de profissão já trabalhou em redações como Viagem & Turismo, Placar, Veja São Paulo, Vice e R7 e já publicou reportagens na Piauí, Brasileiros, Rolling Stone, Trip, entre outros lugares