Pela primeira vez, Justiça condena Estado por abordagem violenta

    Jovem negro de 13 anos e seu pai tiveram armas apontadas para a cabeça antes de um jogo do Corinthians em 2010; decisão criou jurisprudência para casos de abuso policial

    O advogado Sinvaldo José Firmo e seu filho, Nathan, então com 13 anos, iam assistir a um jogo do Corinthians na Libertadores de 2010, contra o Flamengo, no estádio Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, na zona oeste de São Paulo. Horas antes do jogo, uma abordagem da Polícia Militar de São Paulo, apontando a arma para os dois, deu fim à diversão. Neste ano, a Justiça condenou o Estado a pagar indenização às vítimas da ação policial. O trauma a que foi submetido pai e filho agora se converte em vitória do povo negro, em decisão histórica.

    O advogado relembra a noite daquele dia 5 de maio: “Nós estávamos caminhando e meu filho, por estar ansioso, ficou um pouco à minha frente. De repente, um policial vem com uma arma na mão, mira na cabeça dele e fala ‘Para, levanta a mão para o alto'”, conta. “Eu me identifiquei como pai e questionei a ação a uma criança de 13 anos. O policial se irritou e ficou surpreso quando mostrei a carteira da OAB. Não acreditaram que eu era advogado, tenho certeza porque eu sou preto, e começou a debochar”, continua.

    Enquanto ele e o filho eram revistados, outros policiais da Força Tática faziam a proteção dos “irmãos de farda” com uma calibre 12 em punho. “A truculência e violência foram muito grandes. Então eles começaram a fazer um monte de provocações, estavam com sangue nos olhos, meu filho ficou desesperado. Vi que eles começaram a engrossar, pensei que era a vida do meu filho em jogo, não sabia o que viria depois. Teve um momento que temi pela vida do meu filho”, explica.

    O garoto de 13 anos jogava futebol em uma escolinha do Corinthians. Após o incidente, ele parou com a atividade e começou a ter acompanhamento psicológico. Segundo o pai, o psiquiatra constatou estresse pós-traumático. Com o laudo, decidiu processar o Estado, apesar de não haver jurisprudência envolvendo abordagens violentas de policiais.

    “Começamos a partir do zero. Propusemos a ação, fizemos o máximo que pudemos tecnicamente, inclusive, ela ficou perfeita nesse sentido. Mas sem referência da posição do judiciário, sem jurisprudência para saber o que poderia acontecer”, explica o advogado Lino Pinheiro da Silva, que atuou com Sinvaldo e Maria Sylvia Aparecida de Oliveira na elaboração da ação.

    “Lidar com estado e PM aqui no Brasil não é uma coisa muito simples, mas pegamos tudo o que tínhamos à época de casos mais relevantes sobre as abordagens policias e consequências”, complementa Maria Sylvia, que explica a missão do trabalho. “Fomos buscar isso: demonstrar que a abordagem trouxe um trauma o menino. Nós sabemos que o aparato e a segurança pública serve para controlar corpos negros”, diz.

    Em primeira instância, o processo foi negado. A vitória veio apenas em 9 de abril de 2018, quando a juíza Teresa Ramos Marques, da 10ª Câmara do TJ (Tribunal de Justiça) de São Paulo, considerou o Estado culpado pela ação dos policiais.

    Ela ponderou que nenhuma das partes levou provas “livres de dúvidas”, mas considerou que ficou “demonstrada a abordagem abusiva dos agentes estatais (conduta), o dano provocado (estresse pós-traumático), bem como o nexo de causalidade entre um e outro”, o que baseou sua condenação ao Estado por ação “de seus agentes”.

    “Não bastasse, é importante lembrar que o autor é negro e a Polícia Militar possui um histórico negativo em relação à comunidade negra”, escreveu a juíza, citando caso da PM de Campinas, que orientou em 2013 a seus homens abordarem “indivíduos de cor parda e negra” e a declaração do comandante da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) de que abordagens policiais têm de ser diferentes nos Jardins, bairro rico, em relação às feitas na periferia de São Paulo.

    Teresa ordenou a Fazenda a pagar R$ 15 mil de indenização. Mas para Sinvaldo, mais do que o dinheiro, o ganho real se deve ao caminho aberto na justiça contra abordagens truculentas feitas por policiais. “A decisão fará com que se mude a atitude de alguns policiais. É notório que o Estado se preocupe. É uma decisão que não é minha nem do meu filho, ela é da população e da juventude negra. Cria-se uma jurisprudência para, quando alguém se sentir abusado em uma abordagem, possa buscar seus direitos. Hoje, ela tem embasamento legal”, comemora.

    “Não é vitória dele, minha ou do Lino. A vitória é da população negra. O que precisa agora é conseguir meios para que esses meninos na periferia que sofrem as abordagens tenham condições de buscar essa reparação na justiça. Não é simples, não é fácil”, completa Maria Sylvia, apontando a Defensoria como órgão responsável por atender estes casos.

    A decisão na justiça fez com que professores universitários usassem o caso da abordagem sofrida por Sinvaldo e seu filho como alvo de estudo. A professora Teresinha Bernardo, doutora na PUC-SP em ciências sociais, o apresentou em aula sobre racismo. “Usei este caso como um exemplo do racismo no Brasil e em São Paulo. Não é o primeiro caso de abordagem violenta de meninos negros por parte da polícia”, explica.

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