Preso há dois meses, líder comunitário e presidente de ONG que realiza atividades de educação e esportes foi detido na zona sul de São Paulo, em junho, por suspeita de tráfico de drogas
Por Jeniffer Mendonça e Matheus Moreira, especial para a Ponte
“São Paulo, uma quinta-feira de junho de 2018. Acordo todos os dias por volta das 6h30 da manhã, tomo o primeiro banho (gelado) e o café é servido por volta das 7h~7h15. Após o café, todos arrumam a cela e às 8h toca o sinal para o banho de sol. As celas ficam abertas até às 11h45 e às 12h chega a água para a higiene. Logo em seguida, chega a marmitex. Passo a maior parte do tempo dentro da cela. Desta forma, evito envolvimento e confusão com os demais pois aqui é tudo mil grau, como dizem, mas esses dias que estou aqui, vi, ouvi e observei coisas que até Deus duvida. Se um dia me perguntarem onde é o inferno, sem sombra de dúvidas, direi que o inferno é na cadeia”.
Esse é um trecho da carta que o educador Marcelo Dias, 39 anos, escreveu para a família sobre seus primeiros dias no CDP (Centro de Detenção Provisória) II de Pinheiros, na zona oeste da capital paulista, que tem capacidade para 793 pessoas, mas abriga 1440. Marcelo está preso por suspeita de tráfico de drogas e associação para o tráfico há quase dois meses, período em que a irmã Tatiana Dias e outras mulheres têm se mobilizado nas ruas com cartazes e camisetas escritas “Justiça por Marcelo”. A Ponte as encontrou em uma dessas mobilizações, no dia 2 de julho, num ato de mães contra a violência de Estado.
Na casa localizada no Cursino, na zona sul, onde moram 25 pessoas, todas da mesma família, Marisa Dias, 65 anos, tia do educador, enfatiza que o sobrinho foi preso injustamente. “Eu não lutaria por ele, usaria uma camiseta como essa, se não acreditasse na inocência dele, que sempre atuou em prol da comunidade, dos jovens daqui para que nenhum deles tivesse que ir para o tráfico”, declara.
Marisa é vice-presidente da ONG Novos Herdeiros Humanísticos, fundada em 1998, mas com registro na Receita Federal em 2001. Segundo ela, a entidade atua com uma equipe de voluntários, por meio de doações e parcerias, e já atendeu mais de 400 famílias no bairro promovendo atividades esportivas, aulas de zumba, ginástica, boxe e festas típicas em Vila Brasilina. Marcelo é presidente da organização.
Em quase 20 anos, as reuniões eram realizadas na casa da família. Porém, a Prefeitura Regional do Ipiranga firmou um contrato de convênio com a ONG, em 23 de fevereiro deste ano, para ceder um espaço para a associação desenvolver um projeto conjunto com o poder público denominado “Sócio Cultural Esportiva”. As chaves do espaço, localizado na Rua Mario Grazini, nº 100, foram entregues no dia 4 de abril. “Estávamos começando a dar vida a esse projeto que nós, principalmente o Marcelo, tanto sonhamos”, prossegue Marisa.
Da abordagem à prisão
A entidade tem realizado atividades com o objetivo de angariar fundos para realizar as reformas do local. De acordo com a diretora da ONG, Patrícia Dias dos Santos, 37 anos, Marcelo tinha saído de casa por volta das 13h30 de sábado (9/6) junto com ela e outros voluntários até o CEI (Centro de Educação Infantil) Vereador Francisco Batista para buscar cadeiras emprestadas que seriam usadas para um bingo. “Como estava próximo do horário da reunião na associação de moradores, que era umas 14h, ele disse para gente ‘levem essas cadeiras aqui e o resto eu deixo dentro do carro e levo’. A gente levou no braço e ele foi”, conta. “Como não teve reunião, o Marcelo voltou para ONG e começou a descarregar as cadeiras. Foi onde tudo começou”, segue.
A diretora da creche, Sandra Soares da Silva, confirmou à Ponte a parceria. “O Marcelo havia me pedido as cadeiras com um ofício e eu autorizei. Não estava no dia dos fatos, mas entreguei a chave à Patrícia e emprestaria de novo, porque não é a primeira vez que um ajuda o outro na comunidade”, explica. “O Marcelo é nosso parceiro e as portas sempre estarão abertas para as ações que ele promove no bairro”, completa.
A Prefeitura Regional do Ipiranga também já emitiu uma carta de recomendação, no dia 30 de maio, para um pedido similar da ONG em relação aos eventos que promove. “A Organização solicitou à regional uma carta de recomendação para que pudessem solicitar equipamentos recreativos/esportivos, como bambolês e cones, para a realização das atividades, à Secretaria de Esportes”, disse em nota a assessoria de imprensa da secretaria municipal das Prefeituras Regionais. A Secretaria Municipal de Educação também já atestou uma carta confirmando que a entidade realiza atividades no CEU (Centro Educacional Unificado) Parque Bristol.
O depoimento de Marcelo no 16º DP (Vila Clementino) condiz com todas as informações acima: ele afirma que estava voltando de uma reunião após ter pego cadeiras emprestadas numa creche para a ONG. Ao se aproximar da sede, viu duas pessoas andando em passos largos soltando uma sacola de papelão próximo a um táxi estacionado em frente ao local. Depois, disse que dois policiais em motocicletas subiram a Rua Mario Grazini, quando ele parou o carro que dirigia ao lado do táxi e sinalizou aos PMs que uma sacola havia sido deixada ali.
O educador relata que esses policiais foram perseguir a dupla que passou, mas retornaram em seguida. Nesse momento, Marcelo contou que chegou perto da sacola para saber o que havia dentro, quando “uma pessoa de dentro do táxi, de voz masculina, gritou ‘não mexe, não mexe’”. Os PMs abordaram o educador e mais quatro suspeitos que estavam dentro do táxi.
“Quando eu cheguei, ele estava sendo abordado e gritando para filmar. ‘Vem aqui fora, vem aqui fora [da ONG]’. A gente se assustou porque não sabia o que estava acontecendo, pensei que era alguma briga”, declarou Carlos Manoel Pereira Sardinha, 24 anos, voluntário da entidade. “Na hora que eu e o Leandro [outro voluntário] saímos, já vimos o Marcelo na parede com o policial segurando a mão dele na nuca, mais 4 pessoas, 2 homens e 2 mulheres”, prosseguiu.
Carlos começou então a registrar o que estava acontecendo, mas uma policial feminina da Rocam (Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas) tentou abaixar o braço do rapaz, que segurava um aparelho celular. “O senhor não tem direito de filmar o que quiser. O senhor vai ser conduzido ao DP juntamente com todo mundo. Põe a mão para trás”, diz a PM nas imagens obtidas pela Ponte. “Disseram que iam me levar como testemunha”, disse Carlos.
O voluntário foi conduzido ao 16º DP, mas não foi ouvido. No boletim de ocorrência, as únicas testemunhas são os policiais militares Luiz Felipe Matos dos Santos, Laércio Luiz Barbosa Junior, Wesley dos Santos Suanez e Luccas Pires da Silva, da 1ª Companhia do 3º BPM/M, cuja versão é divergente.
Os PMs Luccas Pires e Luiz Felipe afirmam que estavam em patrulhamento pela Rua Mario Grazini quando teriam visto cinco pessoas com “atitude suspeita” porque presenciaram um veículo Palio estacionado em fila dupla, com a porta aberta e cujo motorista estaria ao lado de um Renault (táxi). Os policiais disseram que acharam que se tratava de um roubo. Ao se aproximarem, teriam visto o passageiro do banco de trás do táxi entregando a sacola de papel a Marcelo. Nesse momento, o educador teria largado a sacola e tentado ficar longe do veículo por causa da presença dos policiais.
No documento, os PMs relatam que o quarteto no táxi estava “tranquilo” durante a abordagem, enquanto Marcelo, “com ânimo exaltado, dificultava a abordagem, incitando, de certa forma, a população local a intervir”, “pedindo às pessoas que filmassem a abordagem e que conhecia vários policiais da Corregedoria”. O educador tinha dito que era presidente da ONG no local, que na sacola havia droga e que estava tentando coibir o tráfico local. No pacote de papel foram encontrados 4,9 kg de pasta base de cocaína.
Ainda segundo o B.O., o quarteto que estava no táxi teria dito informalmente aos policiais que a droga seria entregue “para alguém que não sabia ao certo quem era, apenas tinham o endereço e o horário” e que o motorista teria sido contratado para levá-los do Terminal Rodoviário Tietê até a Rua Mario Grazini. As duas mulheres que estavam no veículo seriam para “despistar eventual abordagem policial” e que a droga teria como destino a comunidade Cingapura, na Av. Abraão de Moraes.
Já os PMs Laércio e Wesley afirmam que foram acionados para uma ocorrência de possível resistência no local. Laércio teria questionado apenas uma das mulheres e, Wesley, os quatro, que teriam confirmado a versão dada aos outros colegas de farda. Os dois veículos e os celulares dos cinco foram apreendidos para perícia.
No entanto, os quatro permaneceram em silêncio e não depuseram na delegacia. Apenas Marcelo quis prestar depoimento no 16º DP e disse que pensou que na sacola havia possíveis objetos furtados da sede da ONG. No DP, diz o registro, os cinco foram questionados informalmente e negaram relação com os entorpecentes.
Com exceção das duas mulheres e de Marcelo, os outros dois homens eram os únicos com passagens pela polícia e egressos do sistema prisional.
Ligados pelo budismo
Na entrada da casa em que Marcelo mora, um móvel de madeira escura guarda um traço importante sobre o educador e parte de sua família: o Gohonzon. Marcelo é budista de Nichiren Daishonin, uma seita japonesa dirigida por uma organização internacional, a Soka Gakkai Internacional, filiada à ONU e presente em 200 países. O Gohonzon presente na sala da família Dias serve à meditação através da recitação da Lei Mística, O Myoho Rengue Kyo, ou o Sutra de Lótus. A associação informou à Ponte, inclusive, que tem dado apoio espiritual à família nesse momento difícil, por reconhecer o educador como um membro antigo.
Entre os preceitos budistas de Nichiren Daishonin, o buda que dá nome a esta filosofia, um dos principais é a promoção do shakubuku, ou seja, propagação do budismo para não budistas. Mesmo preso, o educador conta, em cartas, que não deixou sua espiritualidade de lado. Nos quase dois meses em que está preso, ele diz ter realizado dois shakubukus com colegas de cela. Sua fé inspirou o nome da organização que preside.
O único nome de advogado que passou pela cabeça de Marcelo e de seus familiares na delegacia foi o de Maurício Kioshi Kanashiro, que atua nas áreas cível e trabalhista e é membro do Coade (Coletivo de Advogados para a Democracia). Maurício, assim como o educador, é budista e o conheceu em uma das reuniões da organização religiosa Brasil Soka Gakkai Internacional.
Semanas antes da prisão, ele passou a visitar a ONG para auxiliar no trabalho social. “A primeira coisa que eu imaginei foi que poderia ter sido um desacato, principalmente por se tratar de uma pessoa que trabalha com pessoas. Pensei que alguma autoridade fez uma revista lá [na ONG] e ele tinha desacatado ou batido boca e como a família não tinha advogado, fui para lá para me inteirar dos fatos”, explicou o advogado à Ponte.
De acordo com ele e com os parentes de Marcelo, o delegado que ficou responsável pelo caso no local não é o mesmo que recebeu o flagrante, já que estava em período de troca de turno da tarde para a noite. Para Kanashiro, não houve irregularidades na condução do caso dentro do distrito policial e, como ele não atua na área criminal, outra advogada está responsável pelo processo.
O delegado Stefan Uszkurat entendeu que os suspeitos não apresentaram “justificativas plausíveis que os desvinculassem da droga que estaria no interior do veículo, sendo entregue a Marcelo” e os indiciou por tráfico de drogas e associação para o tráfico (artigos 33 e 35 da Lei de Drogas de 2006).
No entanto, na audiência de custódia, que aconteceu no dia seguinte, o advogado Mauricio Kanashiro acredita que Marcelo poderia ter tido a oportunidade de responder em liberdade. Dos cinco, só uma das mulheres, que é esposa de um dos envolvidos, teve essa possibilidade por ser mãe de 4 crianças. “Ele preenchia todos os requisitos para ter a liberdade provisória: tem bons antecedentes, tem emprego fixo, no dia que ele foi preso, de manhã, ele fez uma prova física de um de curso de ensino a distância”. De acordo com o registro na carteira de trabalho, desde dezembro do ano passado, Marcelo trabalhava como agente de relacionamento numa empresa de planos de saúde.
Mas, para o juiz Luiz Antonio Carrer, durante a audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda, o fato de alguns envolvidos apresentarem endereço fixo e ocupação lícita não foi suficiente, já que considerou como um delito “grave”, que havia “indícios de autoria” e a prisão preventiva seria “necessária para a garantia da ordem pública”.
“Ele é uma pessoa do bem, tem um histórico de trabalho dentro da comunidade, nunca foi envolvido com droga. É uma pessoa muito querida e estamos preocupados. A nosso ver ele é inocente”, completou Kanashiro.
No dia 5 de julho, o Ministério Público de São Paulo seguiu a conclusão do delegado Stefan Uszkurat e denunciou os cinco pelos crimes de tráfico de drogas e associação para o tráfico. O processo está na 29ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo.
Uma das advogadas de Marcelo, Silene Ramos, fez um pedido de habeas corpus cujo mérito ainda será analisado. “Não apresentamos a defesa ainda pois estou recolhendo as provas [da inocência dele]”.
Outro lado
A reportagem procurou os advogados de cada um dos outros quatro envolvidos, mas nenhum deles quis se pronunciar sobre o caso.
A Ponte tentou contato com o 16º DP para entrevistar o delegado Stefan Uszkurat, mas não obteve retorno. O delegado titular Júlio César de Almeida Teixeira informou que Uszkurat é plantonista e atua após às 20h e aos finais de semana e que ele não poderia comentar a atuação do colega. A reportagem também tentou encontrá-lo nos horários indicados, mas sem sucesso.
Pedimos uma entrevista com o delegado à SSP (Secretaria de Segurança Pública). Enviamos as imagens e questionamos sobre a conduta dos policiais militares durante a abordagem, em que uma PM tentou impedir a realização de filmagens, o que não é proibido por lei.
A SSP, por meio de sua assessoria de imprensa terceirizada, a In Press, não respondeu às questões e enviou a seguinte nota:
A Polícia Militar encaminhou as imagens ao comando responsável pela região para apuração da conduta dos policiais envolvidos e adoção das medidas pertinentes.
Sobre a abordagem, duas mulheres e três homens foram presos em flagrante por tráfico de drogas e apresentados ao 16º DP (Vila Clementino). No veículo ocupado pelos autores foi encontrada uma sacola com cinco tabletes de pasta base de cocaína. O material foi submetido à perícia do Instituto de Criminalística, que confirmou se tratar da substância ilícita. A pessoa responsável pela filmagem não foi autuada por qualquer delito.