Para Coronel Marcelino Fernandes, Brilhante Ustra não era torturador, o Brasil não teve ditadura e militares ‘foram os que menos torturaram’
Responsável por investigar os crimes cometidos por policiais militares, o homem que comanda a Corregedoria da Polícia Militar do Estado de São Paulo, coronel Marcelino Fernandes, afirma, em entrevista à Ponte, que é “um defensor dos direitos humanos”, embora suas redes sociais estejam cheias de textos e vídeos de apoio ao candidato a presidência Jair Bolsonaro (PSL), que já defendeu a tortura e relaciona a luta pelos direitos humanos com “bandidagem”.
Para o corregedor da PM, não há contradição. Ele defende seu candidato: diz que Bolsonaro “nunca falou, nem vai falar” que é favorável à tortura e afirma que as declarações do político foram feitas no clima de quem “xinga a mãe” de um juiz de futebol.
Na entrevista, o corregedor revela uma visão pouco usual do que significa ser um defensor dos direitos humanos. Ele também defende o “direito penal do inimigo”, doutrina criada pelo jurista alemão Günther Jakobs, segundo a qual determinadas pessoas são inimigas do Estado e não devem ter os mesmos direitos que as demais, contrariando o princípio de que todos são iguais perante a lei, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal.
Fernandes também defende a memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) durante a fase mais dura do regime militar e foi oficialmente reconhecido pela Justiça como torturador. “Não concordo com a tese de que o Ustra era torturador, de jeito nenhum. É um absurdo”, diz. Para Fernandes, “os militares foram os que menos torturaram” durante a ditadura militar de 1964 a 1985. Aliás, para Fernandes nem houve ditadura. “Na verdade tinha eleição. Para uma ditadura estaria distante, uma ditadura de Congresso”, diz.
Ponte – Um grupo de PMs foi flagrado posando para fotos enquanto escoltavam um ato público do candidato Jair Bolsonaro (PSL). Está correto?
Marcelino Fernandes – Tem dispositivo no regulamento. Uma coisa é o apoio, outro a manifestação da ordem durante a campanha. O Ciro [Gomes, candidato do PDT] esteve na zona sul de São Paulo e a PM deu apoio. Você ter uma manifestação política durante o serviço é uma transgressão disciplinar média, punível com advertência. A apuração será feita pelo comando da área, não pela Corregedoria. Caso tivesse pluralidade, com policiais de outros batalhões, cujo comando superior não tivesse competência, aí eu avocaria ao subcomandante para ter uma padronização das penas. A apuração foi de imediato, o comandante da região vai apurar e, inclusive, já está apurando.
Como corregedor da PM, que é responsável por investigar desvios de conduta dos policiais, considera contraditório fazer propaganda em suas redes sociais de um candidato que declarou publicamente ser favorável à tortura?
Marcelino Fernandes – Conheço o Bolsonaro desde 2008 e posso verificar a postura dele. O entrevistei duas vezes para as teses de mestrado e doutorado. Meu orientador pediu para entrevistar seis deputados que tivessem ficha limpa, ele foi um deles. À época, em nenhum momento… Existe direito penal do inimigo, os Estados Unidos usa, por exemplo. Para entender o que é, precisaria definir o que é tortura e a busca pela verdade. Por exemplo, uma prisão feita em um estado deplorável, para os direitos humanos já é tortura, para o estado democrático de direito não é. É esse o posicionamento, não tem um posicionamento voltado “ele é a favor da tortura”. Ele nunca falou isso nem vai falar, muitas coisas são colocadas porque não tem um outro posicionamento. Sou estudioso do Karl Marx e do Friederich Engels [filósofos alemães, autores do “Manifesto Comunista”, de 1848] desde a minha adolescência, só que acho que entendi que não dá para ser aplicado em nenhum lugar do planeta. Para se ter uma ideia, desde quando me conheço por gente vejo cubano fugindo até a nado para os Estados Unidos. Desde que eu me conheço por gente, vejo chineses fugindo de serviço de escravidão da China comunista para a república de Taiwan. Desde quando tinha o muro de Berlim, eu vi gente fugindo da Oriental para a Ocidental, sempre do populismo para o lado do capitalismo. Brinco com alguns amigos de esquerda, como o [professor de filosofia] Mário Sérgio Cortella, frequento a casa dele, o próprio [historiador] Leandro Karnal, e falo: quando eu vir um americano nadando para Cuba, eu viro socialista, até hoje eu não vi (risos). Eu acredito no livre comércio, acredito em uma intervenção mínima de um Estado para que se alcance a igualdade por meio do capitalismo moderado, não o selvagem. E que não existe aqui, muito pelo contrário. As leis trabalhistas aqui, se comparar com as dos Estados Unidos, aqui é um país socialista radical, mesmo com reforma trabalhista. Aqui, se abrir uma empresa e for pagar todo impostos, você precisa ter um lucro de pelo menos três vezes mais senão não aguenta a carga tributária.
Em um vídeo enquanto discutia com manifestantes, Bolsonaro fala que o erro da ditadura foi “torturar e não matar”. Como avalia essa frase?
Marcelino Fernandes – Quando está em uma conversa de discussão, ele fala mesmo. É puxada a orelha até mesmo pelos filhos. “Olha, pai, você fala essas coisas e as pessoas vão acreditar que é isso”. É a mesma coisa que uma discussão de futebol. Quando você ofende o juiz da arquibancada, não significa que você conhece a mãe dele como funcionária do Oscar Maroni [dono da casa de prostituição Bahamas], você simplesmente xinga. Vai ser processado depois por isso? Na verdade, a revolta é exatamente ter pessoas que no passado foram presos políticos e hoje são políticos presos. Ou seja, não tiveram ambiente nem no regime militar e não tiveram no estado democrático de direito. O [ex-presidente] Lula, [ex-ministro] José Dirceu… Foram presos nos dois sistemas, tanto no lado democrático como no lado de exceção do regime militar, que na verdade tinha eleição. Para uma ditadura estaria distante, uma ditadura de Congresso. É uma situação bem diferente: quando você tem direito penal do inimigo, tem mortes dos dois lados. Inclusive, torturado de verdade foi o capitão Alberto Mendes Junior [executado em 1970 pelo guerrilheiro Carlos Lamarca], torturado, teve cérebro esmagado por armas, morto a pancadas e a gente sabe que teve ministro [Aloysio Nunes, das Relações Exteriores] que era motorista do Marighella [Carlos Marighella, guerrilheiro]. Eram na época e mudaram de posição, pelo menos falam isso, foram até homenageados.
Mais de uma vez, como no voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff da presidência. Bolsonaro exalta o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra [comandante do Doi-Codi durante a fase mais dura da repressão], reconhecido pela justiça como torturador na época da ditadura. Concorda com as falas do candidato?
Marcelino Fernandes – Você já leu o livro Verdade Sufocada? É dele [Ustra]. Você vai ver que quando se atribui ordens a Ustra, ele não tinha aquela competência. Na verdade, é a mesma coisa de eu ir para uma ocorrência, aparecer um cara morto e falar que fui eu que matei. Tem muita coisa que atribuíram ao Coronel Ustra que ele não fez, algumas coisas ele assumiu e outras colocaram nas costas dele. Quando você ler o Verdade Sufocada, por isso é importante ver os dois lados da história, vai ver que os militares foram que os que menos torturaram.
Como assim?
Marcelino Fernandes – A maioria das torturas eram feitas onde? Nas prisões. Se ver o relatório da Comissão da Verdade, está lá, não preciso falar, eram delegacias: policiais civis, não militares. O delegado Fleury [Sergio Paranhos Fleury, delegado do Dops] era civil. Então, as coisas eram atribuídas aos militares a um preço muito caro. Quando se tem presos que eram considerados presos políticos e assumem o poder, obviamente que vão condecorar Lamarca, guerrilheiros… É uma questão de quem está no poder. Quem ganha a guerra chega ao poder e vence. Quem cometeu atrocidades na Segunda Guerra Mundial? Os dois lados. O que ficou marcado não foi a bomba de Hiroshima, foi exatamente a morte dos judeus na Alemanha. Quando ganha a guerra, você dita a história, infelizmente é assim. Mas o jornalista, o estudioso, o mestre, o doutor, têm que pesquisar os dois lados.
Ustra era torturador?
Marcelino Fernandes – Não concordo com a tese de que o Ustra era torturador, de jeito nenhum. É um absurdo. Sou um defensor dos direitos humanos, qualquer abuso de um policial ele sabe que vai responder. Temos o equilíbrio social de buscar efetivamente a prisão. Dos mais de mil e poucos crimes que temos na legislação, pouco mais de 100 são de regime fechado e ainda se cumpre um sexto da pena. Você tem audiência de custódia, o Brasil, ao contrário da mentira que dizem por aí, é um dos países que menos prende. Temos meio milhão de presos [727 mil, segundo o Infopen], mas com 200 milhões de habitantes. Proporcionalmente, Cuba prende mais do que no Brasil, Uruguai prende mais, o Paraguai, proporcionalmente [segundo o site World Prison Brief, da Universidade de Londres, na lista de países com maior número de presos em relação à população, Cuba está em 6º lugar, Brasil em 25º, Uruguai em 26º e Paraguai em 70º]. Tem que levar em consideração. Nossa legislação penal, falo nos seminários como professor universitário e de pós graduação, a legislação é muito branda, beira a impunidade. Você é preso em flagrante hoje, sai amanhã em uma audiência de custódia. Se condenado, cumpre um sexto da pena. Os irmãos Cravinhos estão soltos há um tempo, um crime bárbaro com a Suzane Richthofen. É muito ruim a legislação, olha que nem estou falando em prisão perpétua, estou falando em cumprir a pena. A legislação dá a entender como impunidade mesmo que condenado. Imagina ter resolução de crime beirando 6%…
Considera errado fazer campanha?
Marcelino Fernandes – É triste, é o planeta que está para nossos filhos, netos. Você tem que fazer algo, mas não tenho… Uma coisa é clara: nunca tive político de estimação. Voto no cara, apareceu uma coisinha, não voto mais. Votei no Collor [Fernando Collor, presidente afastado por impeachment em 1992] no passado, hoje não voto mais. Votei no Doria [João Doria, ex-prefeito de São Paulo pelo PSDB, hoje candidato ao governo de SP}, não voto mais. Não tenho compromisso com pessoas, tenho compromisso com meu país. Pisou na bola, escolho outro. [O escritor português] Eça de Queirós tinha uma frase bonita, você como jornalista deve conhecer: “Político e fralda tem a semelhança que os dois devem ser trocados e pelo mesmo motivo” [a frase, de origem incerta, é falsamente atribuída a Eça de Queirós]. Então, somos apartidários. No Brasil, não dá para ser partidário. Você vê umas alianças… O cara mata a sua mãe hoje e amanhã você faz aliança com o cara.
Sobre armamento, os PM são treinados para andarem com armas e morrem em sua maioria de folga mesmo com a arma. Apoia a ideia defendida pelo Bolsonaro de ampliar o armamento? Ela resolveria o problema da segurança pública?
Marcelino Fernandes – São duas coisas diferentes, mas acredito que sim, resolveria. Os policiais morrem mais no horário de folga e a maioria que morre está armado, até mesmo pelo fator surpresa. Para o cidadão, é o registro da arma que não pode. São coisas diferentes. O que o Bolsonaro fala é de você, como pai de família, ter arma na sua casa como tinha antigamente. Era muito restrito portar a arma, como jornalista, por exemplo, teria que alegar ameaça, fazer um curso, um monte de restrições, como era no passado. O que a pessoa vai ter com mais facilidade: a arma em casa. Quando se tinha o porte em casa, antes da lei de 1997 e do Estatuto do Desarmamento de 2003, se olhar a quantidade de homicídio, era menor. O que aconteceu? Tem um monte fatores, não é só atribuir também à falta de armamento em casa a morte de civis. Sabemos que até o Ciro Gomes falou: são 60 mil homicídios por ano. É muita gente morrendo, mas aí passa por outras coisas: educação, trabalho, um monte de coisa que a nossa sociedade acabou regredindo em 30 anos.
(*) Reportagem atualizada em 31/8, às 16h, para informar que corregedor excluiu uma das postagens em apoio a Bolsonaro