Chacina que deixou 8 mortos em São Gonçalo (RJ) completa um ano sem solução. MP descartou participação de policiais e criminosos, mas investigação sobre militares prossegue – a cargo de procuradora militar
As paredes não falam. E nem precisa. As marcas de tiros são evidentes até para os olhares menos atentos. A Estrada das Palmeiras tem trechos de pavimentação precária e outros de “estrada de chão”, como é comum dizerem na comunidade. Da entrada do Morro do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, até aquele ponto, foi uma longa distância. Talvez quilômetros. Subimos e descemos ladeiras algumas vezes, passamos por largos, botecos, rotatórias, uma padaria, uma escola municipal, três igrejas, sempre tomando o cuidado para, de tempos em tempos, acionar o pisca alerta para informar que nosso acesso foi permitido.
Há exatamente um ano, era início da madrugada de sábado quando 8 pessoas foram assassinadas a tiros que vinham da área de mata da estrada das Palmeiras. A autoria dos disparos até hoje é desconhecida. À direita da via, bem no ponto dos ataques, há um condomínio com várias casas, todas muito parecidas. À esquerda, duas casas: uma delas indica que há serviços de oficina mecânica. Ao lado uma casinha de portão branco, com o número feito de forma improvisada, com tinta passada a dedo na parede. Um casal de velhinhos e um cachorro estavam ali, observando o sábado ensolarado de março, quando a reportagem da Ponte visitou o local.
Na comunidade, as pessoas evitam o assunto, por medo ou desconhecimento. “Eu não vi, não ouvi, então não vou falar nada”, diz o aposentado José Cesário Filho, 82 anos, que estava em frente à casinha com a mulher, Marline. Aquela noite de 11 de novembro de 2017 foi como outra qualquer em que, religiosamente, Seu José tomou remédios para dormir e só despertou no dia seguinte. Vindos de Sapé, na Paraíba, há mais de quatro décadas para tentar a vida na cidade grande, o casal construiu a casa com as próprias mãos. “Nunca achei um canto para ter paz como aqui”, enuncia José, enquanto nos convida para entrar. Os dois reclamam um pouco sobre como as enchentes vindas com as águas de março deste ano castigaram aquele pedaço do Salgueiro. Há um valão em frente à residência por onde também passa parte do esgoto não tratado e que, quando chove demais, transborda espalhando água lamacenta e mal cheirosa por toda parte. A região sofre com saneamento básico precário. Também por isso, ao longo da estrada, a cada 20 metros há uma bomba d’água.
Uma das vítimas da chacina, inclusive, estava acionando a máquina quando foi morta. “De noite precisa ligar a bomba, sim, senão não tem água no dia seguinte”, explica Marline, que muda o semblante quando questionamos sobre o que sabe daquela noite. “Se quiser falar de outra coisa, tudo bem. Disso a gente não fala, não”.
Alguns dos corpos estavam a menos de dez metros da porta de entrada da casa de José e Marline. Mesmo assim, o casal assume um comportamento muito recorrente na comunidade: o silêncio.
O que se sabe
Na madrugada do dia 11 de novembro, onze pessoas foram baleadas por munição calibre 5,56. Os disparos vinham da área de mata que margeia a Estrada das Palmeiras. Os atiradores vestiam preto, tinham o rosto totalmente coberto com balaclava, usavam fuzis com mira laser e lanternas para conseguir agir com precisão na escuridão. Havia uma operação em curso na comunidade em que estavam presentes o Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) da Polícia Civil do Rio, policiais militares e o Exército Brasileiro. Três veículos blindados entraram na comunidade por volta de 1h: um caveirão da Core apenas com policiais civis, um blindado Guarani que tinha militares do Exército e um terceiro com policiais civis e militares.
Os depoimentos de testemunhas, de um sobrevivente e dos próprios policiais convergem, de certo modo, a essa versão: os disparos, de fato, vieram da mata e nenhum ocupante dos blindados atirou, uma vez que ao chegarem na estrada das Palmeiras já havia corpos pela via.
Sete pessoas morreram no local. Marcio Melanes Sabino, Marcelo Silva Vaz, Luiz Américo da Silva Menezes, Victor Hugo Costa Carvalho, Bruno Coelho da Agonia, Lorran de Oliveira Gomes e Josué Coelho. A oitava vítima, o mototaxista Luiz Otávio Rosa dos Santos, foi socorrido e levado ao Hospital São Gonçalo e chegou a prestar esclarecimentos à polícia, mas não resistiu aos ferimentos e faleceu no dia 1º de dezembro elevando o número de mortos na chacina para oito.
Um dos sobreviventes, motorista de Uber, declarou na fase de inquérito policial da Delegacia de Homicídio de Niterói e São Gonçalo, que os tiros vieram de longe, da região da mata, “tendo os atiradores, instantes após, se aproximado dele, oportunidade em que pôde ver exatamente como estavam vestidos: roupa preta, capacete com lanterna acoplada, balaclava e armados com fuzis que tinham uma luz infravermelha”. A testemunha afirmou que os atiradores se aproximaram, furtaram seu telefone celular e posteriormente voltaram para a mata. Ela também conta que os blindados passaram pelo local onde estavam os feridos, não efetuaram disparos e não pararam. E, por fim, declarou que não havia traficantes no local, já que não há “boca de fumo” neste ponto da comunidade e que tampouco houve qualquer confronto, mas sim “tiro ao alvo”.
A investigação da Delegacia de Homicídio de Niterói e São Gonçalo colheu da internet fotos das Forças Especiais do Comando do Exército Brasileiro com seus uniformes e mostrou a um dos sobreviventes, que reconheceu o fardamento como sendo o mesmo dos atiradores daquela noite.
Documento obtido pela Ponte aponta que o coordenador do Core, Rodrigo Teixeira de Oliveira, foi ouvido pelo Ministério Público Estadual mais de uma vez e disse que não participou do planejamento da operação. No primeiro depoimento, no entanto, disse que na reunião para tal operação não foi discutida a possibilidade de infiltração de forças de segurança na mata e que seria imprudente que a corporação não tivesse notícia de que na mata havia homens do Exército “para prevenir o fogo amigo, mas que tal estratégia do ponto de vista tático faria sentido para surpreender os traficantes quando eles empreendessem fuga”.
Doze meses se passaram, a Polícia Civil, o MP e a Justiça Militar se debruçaram sobre o caso, mas, até agora, não foi possível saber quem atirou e quem mandou atirar nos moradores do Salgueiro.
O MP concluiu a investigação criminal e pediu o arquivamento no dia 30 de outubro. “Não foi possível fazer a identificação. Não há como fazer essa vinculação [entre as mortes e a operação em que policiais civis estavam envolvidos]. Quando eles chegaram, as vítimas já estavam ao solo. A balística não bateu. Nada foi obtido através do laudo pericial das armas utilizadas pela Core em confronto com os ferimentos e do próprio projétil extraído das vítimas”, explica a promotora Andrea Amin, do Gaesp (Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública) do MPRJ (Ministério Público do Rio de Janeiro), em entrevista à Ponte.
O documento do MP afasta qualquer possibilidade de o ataque ter partido de alguma facção criminosa rival –o Salgueiro é dominado pelo Comando Vermelho, como atestam as letras CV pichadas nos muros da favela. “Rodrigo Teixeira de Oliveira, Coordenador da Core/PCERJ, disse que pelas dimensões do Complexo do Salgueiro, bem como a sua localização, é difícil imaginar uma tentativa de invasão de outra facção sem que houvesse uma mobilização grande de marginais e grandes confrontos”, diz trecho da promoção de arquivamento.
O MPM (Ministério Público Militar) se fecha em copas e pouco se sabe sobre o andamento das investigações envolvendo as suspeitas que, cada dia se tornam mais fortes, sobre o envolvimento das Forças Armadas. Em trechos do pedido de arquivamento do MPE obtido pela Ponte, o coronel e comandante das Forças Especiais do Exército, Paulo Edson Santa Barca, afirmou que a operação do dia 11 foi planejada pela Polícia Civil, que teria pedido apenas o apoio dos militares, o que foi autorizado pelo general Mauro Sinott Lopes, responsável pelo comando operacional das tropas durante a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que o governo federal havia autorizado em 28 de julho.
Barca assume que, em 7 de novembro, quatro dias antes da chacina, de fato, o Exército “colocou homens nos pontos altos dos morros da região com o objetivo de monitorar as rotas de fuga de criminosos”, mas destaca que os militares chegaram por helicópteros até os locais e foram retirados por terra ao término da operação”. A Ponte solicitou entrevista com a procuradora da justiça militar Maria de Lourdes Sanson, mas não foi atendida.
‘Eu falo, mas não vai colocar meu nome’
Há quem fale, mas opte pelo anonimato. De certo modo, uma forma de silêncio. Foi com essa condição que uma moradora, que estava em um bar a 300 metros da casa de José e Marline, topou falar. Taxativa, contou que na terça-feira que antecedeu a chacina, houve uma operação do Exército na área de mata. “Nós vimos helicópteros e homens descendo de rapel na mata, vimos se instalarem. Eles não saíram daqui”, disse. “Os tiros [do dia 11 de novembro] vieram da mata, eram homens vestidos totalmente de preto, com rosto coberto [balaclava], armas com mira laser e lanternas”, continuou. A moradora e outros depoimentos apontam que os homens permaneceram acampados na área de mata nos dias que antecederam a matança.
As incursões da polícia e do Exército não são exatamente uma novidade no Salgueiro, já que na época dos fatos, o Rio estava sob GLO, mas, para a moradora, depois da chacina “acabou a paz”. Ela relata que, especialmente após a intervenção federal, as operações têm ocorrido com frequência “de duas vezes por semana” e a prática dos agentes continua a mesma. “Eles entram nas casas sem mandado, pegam comida da geladeira. Dão tiro para acertar qualquer um. Tenho um filho de 19 anos e todos os dias, quando ele sai, eu fico rezando até ele voltar para que ele não seja o próximo. É complicado viver em um lugar em que as pessoas acham que somos conivente com o crime”, desabafou.
Um levantamento do Circuito Favelas por Direitos, coordenado pela Ouvidoria Externa da Defensoria Pública e apresentado em setembro, identificou pelo menos 30 violações, como violação em domicílio, abordagem abusiva, letalidade, extorsão e até estupro, cometidas pelas Forças Armadas e pelas polícias em 15 territórios ocupados ou historicamente atingidos pela violência de agentes públicos.
O grito que é como silêncio
A catadora de recicláveis Joelma Couto Melanes, 39 anos, havia se despedido do filho, Márcio Melanes Sabino Junior, 21, no fim da noite de sexta-feira pelo Whatsapp. Ele e o primo iam para um baile funk na comunidade. Cria do Salgueiro, como ela mesma se define, há 8 anos, decidiu mudar para Itaboraí, também na região metropolitana do Rio, por causa do trabalho. Márcio, o mais velho de três filhos, continuou morando no Salgueiro, mas fazia alguns meses que passava a semana na casa da mãe por causa do trabalho.
Joelma acordou com uma primeira ligação de uma amiga informando que havia uma operação e que eram muitos tiros a impedir que a favela dormisse. “Eu chamei meu marido e senti que tinha que ir para lá”, lembra.
Ao chegar na comunidade, o comentário geral era que tinha morrido muita gente para os lados da Estrada das Palmeiras. Joelma seguiu pelo caminho muito escuro e, de repente, estava na barreira policial.
“Botaram farol na minha cara, a gente freou com tudo o carro. E eu olhei para perto das luzes e tinha corpos no chão. Eu fiquei desesperada, eu queria ver quem é que tava caído ali. Naquele momento, eu não sabia que meu filho estava ali. Fiquei tentando me aproximar, mas eles não deixavam.” O telefone de Joelma então tocou. Era a sobrinha: “Tia, mataram o Junior”. Joelma se desesperou. Mas o bloqueio policial não foi desfeito e ela e o companheiro Claudio precisaram esperar horas para se aproximar dos corpos e fazer o reconhecimento.
“Foi horrível porque quando o dia começou a clarear, eu gritei: ‘eu quero ver aquele corpo ali’. Eu disse: ‘meu filho não é bandido, o que vocês fizeram?’. Eles levantaram a camisa dele e um policial me perguntou: ‘ele tem uma tatuagem nas costas?’. Eu disse: ‘tem o nome da filha dele, Manuela. E ele disseram: ‘é seu filhinho mesmo’”, contou Joelma, aos prantos.
Manuela foi abandonada ainda recém nascida pela mãe. Eram Márcio e Joelma que criavam a menina de 4 anos. Agora a missão é da avó, que embora lute por reparação, não acredita que isso um dia vai acontecer. “Eu não acredito que vá haver alguma justiça, entendeu? Na época publicaram que meu filho tinha passagem, que tinha ido pra cadeia, ele nunca foi pra cadeia, eles fizeram isso pra tentar justificar alguma coisa”, revolta-se.
Joelma conta que continua em contato com as antigas amizades do Salgueiro, mas que tem evitado ir até lá. “Existe uma lei do silêncio. Muita gente tem até medo, receio, porque eles estão lá. O Exército segue acampando lá. Se for lá agora, nesse momento, vai encontrar. Eles não deixam mais aquele lugar em paz. Morreu muito mais gente depois do meu filho e ninguém fala nada”, afirma. “Depois dessa lei, eles entram em qualquer lugar, matam quem querem, porque estão protegidos. Podem matar e fica por isso mesmo”, conclui.
Internacionalização do caso
Em 11 maio deste ano, quando o crime completava 6 meses sem solução, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro denunciou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A chacina aconteceu pouco menos de um mês depois da aprovação da mudança na lei 13.491/2017, sancionada pelo presidente Michel Temer, que ampliou a competência da Justiça Militar para atuar casos em que militares sejam acusados de assassinatos e torturas.
Para o defensor público Daniel Lozoya, a alteração, que ele chama de “foro privilegiado”, fere acordos internacionais que o Brasil é signatário. “Há uma jurisprudência ampla da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o tema. As violações de direitos humanos não podem ser processadas, investigadas e julgadas na Justiça Militar e isso se dá com base nas experiências de Colômbia, México e Peru, de que essas instâncias devem se limitar a julgar crimes militares, delitos funcionais. Violações de direitos humanos devem ser processadas por autoridades civis na Justiça comum. A alteração foi aprovada a pedido das Forças Armadas em razão da sua utilização cada vez mais frequente em situação de segurança para atuar em Garantia da Lei e da Ordem [GLO] como uma contrapartida para dar uma maior segurança jurídica, nas palavras das autoridades militares, para agentes fazerem suas ações”, explica.
Lozoya, que assiste algumas vítimas da chacina, destaca que o pedido à Justiça Militar da cópia dos autos foi negado. Foi esse o estopim para a denunciar o Estado brasileiro no sistema internacional. “Quando você tem uma ação de agentes públicos, ainda mais com militares, você tem uma cadeia de comando. Os militares não estavam lá por vontade própria. Eles estavam cumprindo ordens de quem? Isso precisa ser investigado”, afirma.
“Essa conclusão da investigação do Ministério Público só reforça essas responsabilidades, porque, se não foram civis, acho que para bom entendedor meia palavra basta. As conclusões do MP dizem muito pelo que não dizem”, dispara o defensor.
A defensoria estadual vai propor uma ação de reparação junto com a DPU (Defensoria Pública da União) responsabilizando o estado do Rio de Janeiro e o governo federal pelos danos provocados às vítimas, enquanto aguarda uma resposta da CIDH.
A promotora Andrea Amin destaca que o que acabou foi a investigação criminal, mas que a conduta dos policiais seguirá sendo apurada pelo Gaesp. “Houve quebra de sigilo telefônico, solicitamos informações sobre espaço aéreo. O que tinha pra fazer a gente fez e não chegamos à autoria daqueles homicídios”, reitera. Para Andrea, os procedimentos adotados naquela noite pela Polícia Civil precisam ser apurados e, se for o caso, reavaliados e modificados. “Cabe instauração de procedimento para apurar essa operação por parte da Corregedoria da Polícia Civil. E nós vamos analisar também se, dentro da esfera técnica, houve falha, se há algo que pode ser melhorado, se existe alguns ritos que não foram cumpridos ou devem ser introduzidos”, explica Andrea. Quando questionada se as evidências apontam para a autoria do Exército, a promotora se acautela. “Homens vestidos de preto estavam na mata e atiraram com arma a laser e mataram pessoas. Isso foi reafirmado inúmeras vezes. Agora, seria leviano e irresponsável afirmar qualquer coisa além disso”, finaliza.
A vida continua
Um crime sem punição completa um ano e a vida no Salgueiro continua. As chuvas de verão logo voltarão a atormentar o casal José e Marline. “Tá vendo essa marca aqui na parede?”, aponta uma marca de aproximadamente 40 centímetros. “É a água da chuva que o valão não da conta e vem para dentro com esgoto e tudo”. Mesmo assim, o casal de idosos não quer sair do morro de jeito algum.
“Essas mortes aí que você quer saber, isso aí foi inédito aqui na Estrada das Palmeiras. Só fiquei sabendo porque foi aqui. O que eu sei é que os ladrões que mereciam um fim assim são os políticos que desgraçaram o Brasil. Não as ‘boca de fumo'”, retoma José, antes de voltar a mostrar as fotos dos filhos, netos e bisnetos, espalhados pelo Brasil. “Minha filha, essa daqui está em Brasília, sabe? Mas eu não saio daqui. Sou feliz”, sentencia.
“Posso contar uma história? É de um rei muito rico que se considerava muito triste. Aí ele pediu para conseguirem a camisa que o homem mais feliz do mundo usava para ele. Quando encontraram o homem mais feliz do mundo, ele não estava de camisa. ‘Diga ao rei que o homem mais feliz do mundo não tem camisa pra se vestir’. Não é ter muito dinheiro que faz a gente feliz…”
Desligamos a câmera e nos despedimos. Dona Marline chama para um café um dia desses. Seu José me abraça e completa, baixinho: “…é consciência tranquila”.
* Produção da reportagem: Alan Lima
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