Coletivo És uma maluca, responsável pela criação da instalação, substituiu áudio do discurso do presidente eleito por receita de bolo, em alusão ao período da ditadura
A liberdade de expressão foi colocada em xeque na Casa França-Brasil, ligada à Secretaria Estadual de Cultura do Rio, esta semana. A exposição coletiva “Literatura Exposta” reúne instalações artísticas baseadas em textos de 10 autores periféricos. O coletivo “És uma maluca” criou então “A voz do ralo é a voz de Deus” com base no conto “Baratária”, de Rodrigo Santos, que conta a história de uma mulher torturada na ditadura militar com a introdução de baratas na vagina.
Na instalação, os artistas usaram 6 mil insetos de plástico saindo de um bueiro de onde sai também uma gravação com coletânea dos discursos do presidente eleito Jair Bolsonaro. O áudio, no entanto, foi proibido. A solução foi substituir a gravação por uma receita de bolo, segundo informou nota do coletivo artístico nesta quarta-feira (5/12). A estratégia de usar receita de bolo no lugar de conteúdo censurado, como forma de protesto, foi usada na época da ditadura pelo Jornal da Tarde. Já O Estado de S.Paulo, do mesmo grupo, colocava versos de Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões.
“Os áudios são publicamente conhecidos e foram amplamente veiculados em sites de streaming, redes sociais, entre outros meios. São falas do próprio ex-capitão da reserva, como aqueles nos quais o mesmo enaltece o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que chefiou o DOI-CODI, um dos órgãos de repressão política na ditadura”, argumentam os artistas na nota em que chamam a decisão de “censura” e lembram que o espaço da arte é justamente o da reflexão. “Acreditamos que as manifestações artísticas são espaços de reflexão, elaboração de possibilidades e exploração de diversidades nas formas de pensar, sentir e estar no mundo. Em uma sociedade livre e democrática defendemos que este direito é irrevogável”, escreveu o grupo.
Rodrigo Santos, autor do conto, concorda. “Qualquer tipo de censura é hedionda. A arte tem que ser libertária, até para fazer pensar. Achei uma babaquice imensa o cara censurar. Até porque, se tivesse ficado ali não tinha dado esse auê todo. A produção artística passa por varias camadas e nenhuma delas pode ser proibitiva. Você pode não gostar, mas você não pode proibir”, afirmou em entrevista à Ponte.
Para o escritor, a proibição da exibição do áudio é, de certa forma, o reconhecimento de que Bolsonaro falou bobagem. “Achei até engraçado. Vai ter a galera puxando saco e passando pano. Eu vejo como uma atitude individual do cara que proibiu. Não acredito nem que ele tenha tido indicação de nada não. Ele olhou e falou ‘vou lamber uma botina'”, criticou.
Uma curiosidade é que o texto foi escrito em 2016, ainda muito longe do contexto eleitoral deste ano que deu vitória à extrema direita. “Eu gosto muito do desconforto. De alguma forma a gente tem que incomodar. Foi uma sacada muito boa deles de relacionar com a atualidade e ressignificar essa coisa e trazer também um registro de seu tempo”, elogia Rodrigo.
Apesar de tanto o coletivo – responsável pela obra visual – quanto Rodrigo – autor do texto que inspirou a instalação – definirem a proibição como censura, o escritor não acredita que possa ser comparável ao regime militar, porque o tempo é outro. “Eu não vejo como uma coisa sistematizada como a da época da ditadura. O que vai acontecer é isso de ter gente achando que estão fazendo para o bem da nação. Mas esse tipo de figura vai começar a brotar em todo lugar, esses lambe botas querendo agradar um patrão virtual”, afirmou.
Na visão de Rodrigo, a repercussão foi extremamente positiva. “Espero que todo mundo agora fique pilhado de espalhar a ideia. É bom saber onde dói pra saber onde bater. É bom ter esses inimigos bem determinados pra gente não esmorecer”, finaliza.
Ao jornal O Globo, o diretor da Casa França-Brasil, Jesus Chediak, e o secretário estadual de Cultura, Leandro Monteiro, defendem a decisão e negam ser censura. “Não considero censura. Eu só tenho que preservar a imagem de um presidente eleito. Não vou permitir que isso aconteça em um equipamento público do estado”, declarou o secretário ao jornal.
A Ponte solicitou entrevista por e-mail com um deles. Em nota, Jesus Chediak afirma que achou o conteúdo ofensivo e ressalta que a Casa França-Brasil como órgão público tem critérios para aprovar previamente os projetos que serão expostos. “O teor ofensivo da instalação me foi omitido quando aprovei a programação. E nenhum momento me foi colocado que haveria ofensas as autoridades, no caso, ao presidente Jair Bolsonaro.
Claro que, se isso ocorresse, não seria aprovada a mostra, porque não contemplaria os nossos critérios de pré-avaliação de projetos. Logo não se trata de censura de uma obra isolada, mas da omissão do conteúdo da instalação quando nos foi apresentado o projeto para a aprovação”, escreveu.
A exposição “Literatura Exposta” está aberta ao público desde terça-feira (4/12) e vai até 14 de janeiro com entrada gratuita.
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