Relatório mostra que 71 profissionais se mataram nos últimos dois anos; voluntária de rede de prevenção do suicídio alerta: ‘há um ser humano dentro da farda’
Quatro policiais se mataram por mês em São Paulo no ano passado. Dados do relatório da Ouvidoria das Polícias do estado mostram que houve 71 casos de suicídio em dois anos. Mais grave: houve crescimento de 73% nas ocorrências, com 20 ocorrências ao longo de 2017 e 51 registros em 2018.
As mortes englobam casos das polícias Civil e Militar. O levantamento, baseado em dados das corregedorias das corporações, aponta que 10 policiais civis se mataram em 2017, mesmo número de ocorrências no ano seguinte, totalizando 20 mortos. Enquanto isso, a quantidade de PMs que cometeram suicídio mais do que dobrou nesse intervalo, saltando de 16 para 35, totalizando 51 vítimas.
Os suicídios somados em 2017 com 2018 superam os homicídios de policiais civis, com 14 no período, apenas 30% menos do que os 20 suicídios nesse intervalo. Quanto aos PMs, 41 integrantes da corporação morreram assassinados somente em 2018, seis casos a mais do que as 35 vítimas de suicídio.
A quantidade de ocorrências preocupa o ouvidor das polícias de São Paulo, Benedito Mariano. “É muito alto o índice de suicídio na polícia de São Paulo. A Ouvidoria entende que a questão deve ser encarada como prioridade na SSP (Secretaria da Segurança Pública e no Comando das polícias”, diz o profissional.
Responsável pelo levantamento, Mariano apresentou ao secretário da pasta, o general João Camilo Pires de Campos, uma proposta para criar grupo voltado ao atendimento de policiais. Segundo o ouvidor, o atendimento deve ser feito por profissionais fora das polícias, o que possibilitaria identificar os motivos que levaram aos agentes de segurança a cometerem suicídio. Conhecidos os gatilhos, a ação seguinte é criar uma política de prevenção.
“Possivelmente não é uma única motivação. E evidente que precisa ter uma análise urgente. É bom que se diga que esse aumento na PM, a maioria não foi em serviço, foi na folga ou na reserva (aposentados). Pelo meu conhecimento, é o maior número na história da Polícia Militar de SP. Já a Civil, nunca tivemos dados no últimos anos de 10 policiais que se mataram em um ano”, diz, detalhando que a maior parte dos PMs é de baixa patente, os chamados praças (cabo, soldado, sargentos e sub-tenentes) – as demais patentes (tenentes, capitães, majores e coronéis) se enquadram como oficiais.
Mariano afirma que “sentiu na reunião com o general João Camilo que ele ficou muito preocupado com esta questão do suicídio, disse que vai reunir as polícias e discutirá para colocar como prioridade a questão”. O ouvidor sustenta que o acompanhamento feito atualmente na PM é insuficiente e na Civil não há suporte.
Questionada pela Ponte sobre o número de suicídios de policiais, a SSP rebateu o comandante da Ouvidoria. Segundo a pasta, há sim auxílio específico para casos de problemas psicológicos e detalha quais ações são feitas em caso de integrantes com diagnósticos.
“O Sistema de Saúde Mental da PM disponibiliza aos policiais serviços de atendimentos psicossociais realizados por psicólogos e assistentes sociais do CAPS (Centro de Atenção Psicológica e Social), sediado na Capital, bem como nas unidades policiais que possuem NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial). Já a Polícia Civil possui uma Divisão de Prevenção e Apoio Assistencial, onde psicólogos e assistentes sociais ficam disponíveis para atendimento. Os casos de suspeita de problemas psiquiátricos/psicológicos são encaminhados ao DPME (Departamento de Perícias Médicas do Estado) para avaliação”, explica a SSP.
‘Tese de super-humano aumenta fragilidade’
Quem trabalha na prevenção de suicídio explica que diversos fatores influenciam na decisão da pessoa em se matar. Contudo, não é uma ação que acontece da noite para o dia, há um acúmulo de situações dentro da pessoa que dispara o gatilho.
“Caso ela não dimensione e não trabalhe essas turbulências, dores e angústias, elas vão se avolumando dentro dela”, explica Elaine Macedo, voluntária do CVV* (Centro de Valorização da Vida). “Há um tipo de caso que é o contágio: a pessoa não está bem, ela vai para um ambiente que afeta ou, então, tem pessoas que não estão bem, isso influencia. Se uma pessoa cogita esta prática e outra pessoa morre por suicídio, isso alimenta a dor e o sofrimento”, complementa.
A profissional explica que fatores externos, como ambientes tóxicos, crises na sociedade e até mesmo bullying têm poder de influenciar a pessoa a cometer suicídio. Quanto aos profissionais da segurança, ela exemplifica casos extremos, como o rompimento da barragem em Brumadinho, em Minas Gerais, as enchentes no Rio de Janeiro e ataques recorrentes de facções criminosas no Ceará.
“O militar está nas três situações: age em brumadinho no socorro das vítimas, atua no Rio com o desastre e está em Fortaleza nas regiões com confronto. Existe a pessoa militar e existe a pessoa por trás da farda”, aponta Elaine. “Fora daquele papel tem um ser humano com fragilidades, angústias e dores. Por muitas vezes, a sociedade espera que ele seja um super-humano forte o tempo todo. Quanto mais se exige dessa pessoa ter autossuficiência, mais as fragilidades a atingem”, emenda.
A solução para o problema, segundo a voluntária, é justamente fazer um acompanhamento psicológico e terapêutico adequado. Fortalecer vínculos, como os familiares, de amizade dentro e fora do trabalho, são outros pontos positivos. “Às vezes, os fatos nos contam que uma brincadeiras hostil, ambientes competitivos, são grandes impulsos para fomentar as dores da pessoa e gerar desequilíbrio. Se não há acompanhamento e cuidado emocional, psicológico, as coisas vão se avolumando”, justifica.
*O atendimento do CVV é gratuito pelo telefone 188 e também on-line pelo portal do CVV.
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