Essa foi a frase de despedida de Ricardo Boechat a mim quando paramos de trabalhar juntos; para mim, um exemplo de como o jornalismo acontece ao vivo e como é importante ter empatia
Era novembro de 2016 e eu estava no corredor do Hospital das Clínicas de São Paulo, da USP (Universidade de São Paulo), onde havia terminado de participar de uma transmissão ao vivo com Ricardo Boechat. Era semana de doação de sangue. Foi uma das últimas vezes que entraria ao vivo na rádio BandNews FM, onde tive a alegria e a sorte de ter trabalhado como repórter durante alguns bons anos, com uma equipe aguerrida e que me ensinou que jornalismo se faz ao vivo mesmo. Essa, aliás, era uma das muitas máximas do Boechat. Assim como a outra que dava importância total ao ouvinte e a que dava crédito absoluto a alguém que estava fazendo uma denúncia. Mas isso eu já vou contar.
Nesse dia, 21 de novembro de 2016, terminamos a transmissão e Boechat perguntou, como de costume, para onde eu estava indo e se precisava de uma carona. Disse a ele que ia ficar um pouco mais lá porque teria outras entradas [jargão usado para se referir a boletins ao vivo na rádio], mas que queria aproveitar aquele momento para me despedir. Ele se mostrou surpreso e quis saber para onde eu iria. Eu disse: “Para lugar nenhum. Mas sei que meu tempo aqui na rádio acabou. Talvez até no jornalismo. Estou tentando entender ainda o que quero fazer nos próximos anos. Tem um projeto aí, de jornalismo de direitos humanos, mas é muito mais dúvida do que certeza”. Eu estava me referindo à Ponte, que àquela altura, ainda procurava se firmar.
Boechat colocou a mão sobre um dos meus ombros e disse: “Você tem certeza disso? De que quer sair? Não sei se é um bom momento, inclusive econômico para isso”. Eu rebati: “Quero arriscar”. Boechat sorriu, como comumente e para todos sem exceção fazia, e me disse: “Então vá. Sabe que vou te confessar uma coisa: eu, quando era mais novo, em algum momento também quis abandonar o que fazia, tentar outra coisa. Aí fiquei na dúvida entre ir e não ir e, no final das contas, começaram a vir filhos, as responsabilidades mudam. Pensei que não era a hora mais. Deixei para lá. As coisas foram acontecendo, eu vim para São Paulo e não sei como seria se eu tivesse arriscado outra coisa. Mas não deu porque não me foi dada pela vida essa escolha. Se você pode fazer isso agora, se não tem ninguém que depende de você, então vá”. Agradeci e demos um abraço. E ele me disse: “Bom, só posso te desejar boa sorte e dizer que se quiser voltar, se precisar falar, qualquer coisa, você tem meu telefone. Não hesite em me procurar”.
Foi assim que eu me despedi do Boechat. Num misto de conselho de pai e de colega de profissão, extremamente carinhoso e lúcido. Nunca mais nos vimos. No ano passado, quanto estava em uma cobertura do Rio de Janeiro, cheguei a falar com ele pedindo o telefone de uma pessoa. Ele, que sempre estava fazendo mil coisas ao mesmo tempo, passou o contato que tinha naquele momento.
O Boechat era assim: tudo ao mesmo tempo, agora. Boechat era intenso: quando estava envolvido em alguma história, quando estava querendo atacar algum desafeto, quando se encontrava com ouvintes. Tudo. Para quem não sabe, Boechat costumava colocar a versão de quem estava fazendo uma denúncia de cara, assim, ao vivo, no ar. Depois seguia para pedir outro lado, essas coisas. Essa “moral de quebrada” que ele dava para quem se propunha a trazer a sua história no ar, na minha visão, o cerne da empatia jornalística, foi um grande diferencial na trajetória dele e da rádio onde se consagrou.
Certa vez, ele estava dando uma espécie de treinamento interno para os jornalistas da rádio e algo me marcou muito. Alguém perguntou a ele como ele poderia ter certeza de que determinado ouvinte que ligava fazendo uma denúncia não estava mentindo. Ele rebateu: “Por que eu vou partir da premissa que o sujeito que tá fodido, que está com algum problema, vai ligar para mim e passar um trote? A premissa tem que ser o contrário. Na minha história no jornalismo, te digo sem medo de errar, que de dez telefonemas, nove estão contando a verdade”, pontificou. Respirou e se corrigiu: “Quer dizer, de dez telefonemas, dez são verdades. Algum ali pode ter um exagero ou outro, mas a história está ali com certeza”.
Atualmente, trabalhando com denúncias de violações das mais diversas aqui na Ponte, vez ou outra, lembro do “careca”. Dê crédito a uma versão. A vítima que está contando a sua versão merece ser ouvida. Merece respeito. O ditames do bom jornalismo, claro, devem ser sempre observados. E Boechat o fazia. Dava a mesma oportunidade para o “bandido” e para o “mocinho”, se formos pensar em uma perspectiva mais dialética.
E nesse sentido, era possível observar que Boechat era assim. Não era um personagem.
Muitas vezes polêmico, quase sempre insubordinado, a verdade é que, embora submetido a regras dos locais onde trabalhou, no final das contas, ele fazia mesmo o que queria. Era incontrolável. Tinha um humor peculiar. Havia uma brincadeira na rádio, porque ele sempre estourava o tempo do final do jornal para o próximo, que era dizer a hora e, na sequência, “no horário do Boechat”. Claro que não fazíamos isso no ar. Boechat era incansável, quase não tinha espaço na agenda e ainda assim dava um jeito para estar nos lugares. Era autêntico. Vai fazer muita falta.
No aniversário de São Paulo de 2016, a programação especial da rádio aconteceu no Memorial da América Latina, na zona oeste de São Paulo. Como sempre acontecia, eu cheguei bem antes dele para verificar se estava tudo a contento, se o equipamento estava funcionando e deixar tudo certo para a transmissão. Como também sempre acontecia, uma legião de ouvintes ia para esses locais, na esperança de conhecer Boechat. Eu cheguei e havia dezenas de cadeiras, dispostas possivelmente para que ouvintes se acomodassem para “assistir” a programação, e na frente a mesa onde ele estaria com uma grade que separava o âncora e o público. Achei estranho por um lado, mas, por outro, pensei com cabeça de produtora: “bom, pelo menos dá pra organizar a turma que quiser tirar foto com ele”. Ledo engano. Ao chegar, Boechat me disse: “que merda é essa?”. Não preciso nem dizer que ele fez a gente tirar todo o gradil e disse: “meu lugar é aqui, no meio de todo mundo. Podem vir, gente, vamos tirar foto”. Com ele, as definições de “foda-se” eram sempre atualizadas.
Quando ouvi nesta triste segunda-feira de fevereiro, os meus antigos colegas de rádio dando a notícia da morte do careca ao vivo, entre soluços e algumas lágrimas contidas, doeu. Sheila, Barão, Carla e Letícia, sua intrépida produtora de tantos anos: em nome de vocês quero dizer para toda a equipe que lamento muito esse dia. E que desejo força para seguirem fazendo da BandNews FM o sucesso que é, muito pela marca do Boechat. Vocês vão conseguir.
Também quero deixar meu abraço para toda família, os seis filhos – em especial Catarina e Valentina, e a “doce Veruska” a quem prestava diárias homenagens no rádio.
Fica sempre a sensação de que eu queria ter convivido mais com ele. Boechat, queria te dizer do fundo do coração: “Boa sorte. Se quiser voltar, se precisar falar, qualquer coisa, pode ligar”. Vá em paz, mestre. E obrigada.