Protestos contra morte de Pedro Gonzaga fecham Extra: ‘vidas negras importam’

    Manifestantes marcharam em frente a filiais da rede de supermercados de diversas cidades contra o genocídio da população negra; jovem foi morto por segurança no Rio

    Ato em filial no Extra na Barra da Tijuca, onde Pedro Gonzaga morreu (17/2/2019) | Foto: Ana Paula Souza/Ponte Jornalismo

    “A nossa morte é política, a nossa morte é institucionalizada, nossas mortes não podem passar em branco”, gritavam em coro, emocionados, centenas de pessoas em frente à porta da filial da rede de supermercados Extra, do Grupo Pão de Açúcar, na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro, na tarde de domingo (17/2). Ali, diversos manifestantes negros se colocaram em memória e protesto no local onde o jovem Pedro Gonzaga, de 19 anos, morreu na quarta-feira (14/2) após ser imobilizado por Davi Ricardo Moreira Amâncio, segurança da Group Protection, que presta serviços para o estabelecimento.

    Os presentes se concentraram por volta das 12h em frente aos portões do mercado, na Avenida das Américas, com diversos cartazes. À medida que o número de participantes foi aumentando, a empresa fechou as portas. Cantando a música de “A Carne”, que ficou conhecida na voz de Elza Soares, aproximadamente 400 pessoas ocuparam o estacionamento do mercado em marcha cobrando justiça pela morte do rapaz e contra o genocídio do povo negro. “Minha preocupação é muito grande principalmente porque quando eu olho pra minha favela e vejo gente morrendo sem ter nenhum tipo de resposta do governo, a gente vê que é realmente nós por nós. Se nós, pretos, não nos unirmos para fazer essas mudanças, vamos continuar morrendo”, declarou Rene Silva, jornalista do Voz das Comunidades e um dos organizadores do ato.

    Manifestantes entram em estacionamento do supermercado no Rio | Foto: Ana Paula Souza/Ponte Jornalismo

    Os manifestantes também colocaram seus corpos numa intervenção para simular o assassinato de jovens negros, jogaram tinta vermelha na placa do Extra e fizeram um abraço coletivo em memória a Pedro. “A morte de Pedro Gonzaga é a morte de todos nós porque a gente tem o direito de entrar em um supermercado e não ser confundido com bandido”, disse o youtuber e ativista Spartakus Santiago.

    A manifestação terminou pacificamente com duas faixas da avenida ocupadas, em que os nomes de Marielle Franco, Amarildo, Claudia, dentre outros foram entoados com forte emoção.

    Cartaz de manifestante faz referência à música “A Carne” | Foto: Ana Paula Souza/Ponte Jornalismo

    Em São Paulo, o ato aconteceu na filial do Extra na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, próximo à Avenida Paulista, região central da capital.

    “É fundamental que a gente reivindique a responsabilização das instituições porque poderia ter acontecido com qualquer pessoa negra”, afirma Raquel Virginia, da banda As Bahias e a Cozinha Mineira. “Eu já fui perseguida quando fui a um supermercado a ponto de um segurança apontar uma arma para mim. Não é possível admitir uma tortura com nossos corpos, uma tortura que foi filmada”, prossegue em referência ao vídeo em que Pedro aparece por baixo do segurança e uma testemunha alerta “tá sufocando ele” e outra diz “ele está roxo”.

    A mãe do rapaz que acompanhou toda a situação havia explicado que o filho é dependente químico, teve um surto e afirma que ele não estava armado. O segurança Davi Amâncio alegou que Pedro tentou furtar sua arma e teria fingido uma convulsão. O delegado Cassiano Conte, responsável pelo caso, declarou ao El País que Davi “se excedeu na legítima defesa” e o segurança está respondendo por homicídio culposo (sem intenção de matar) em liberdade após ter pago R$ 10 mil de fiança, três horas depois de ter sido detido.

    Raquel Virginia, da banda As Bahias e a Cozinha Mineira | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Os manifestantes se concentraram por volta das 14h em frente aos portões do mercado. Em meio a falas emocionadas e gritos de “Marielle perguntou, eu também vou perguntar: quantos mais vão morrer para essa guerra acabar?”, houve um momento em que os participantes queriam entrar no supermercado.  Na ocasião, houve tensão com a Polícia Militar, que apresentava um contingente de pelo menos 20 profissionais que não estavam autorizando a entrada no estabelecimento, que até então não estava fechado.

    A reportagem presenciou uma policial ameaçando jogar bombas para dispersar os manifestantes, já que a PM também não estava permitindo a ocupação das faixas da Avenida Brigadeiro Luis Antônio. Com isso, um grupo acabou subindo a avenida com destino ao MASP (Museu de Arte de São Paulo) enquanto outro permaneceu em frente ao mercado.

    Apesar dos ânimos exaltados, a PM acabou não impedindo o trajeto do grupo, que seguiu até o museu sem ocorrências. Já os que ficaram em frente ao Extra fizeram com que o mercado ficasse fechado por cerca de três horas e finalizaram o evento aos gritos de “a gente tem que existir e resistir”.

    Protesto encerrou em frente ao mercado, em SP | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    ‘Por que as mortes de negros não comovem?’

    Além das capitais fluminense e paulista, protestos foram marcados  no mesmo dia nas cidades de Recife (PE), Belo Horizonte (MG), Fortaleza (CE) em decorrência da repercussão do caso, principalmente nas redes sociais, onde diversos artistas e personalidades públicas se manifestaram. Na sexta-feira (16/2), duas hashtags se destacaram: #VidasNegrasImportam, uma tradução de Black Lives Matter, em referência ao movimento negro norte-americano, e #ACarneMaisBaratadoMercado, alusão à icônica canção “A Carne”.

    Houve, ainda, postagens comparando a comoção envolvida com o caso de um cachorro que morreu após ser agredido a pauladas por um segurança do supermercado Carrefour, em Osasco, na região metropolitana de São Paulo, em dezembro de 2018, e que teria repercutido muito mais em relação à morte de Pedro.

    “Não é errado se comover com animais, é também muito importante, mas o que a gente questiona é por que as mortes de negros não comovem? Por que valem menos?”, critica Douglas Belchior, professor de História e militante da Uneafro. “Isso demonstra uma completa desumanização do povo negro e uma comprovação de que a vida negra não têm valor numa sociedade racista e isso é histórico porque a questão racial é um pano de fundo para todas as relações sociais e para todos os conflitos sociais no Brasil”, prossegue. “Nós somos apagados na indústria cultural, nos programas de televisão, mais diretamente com a ação da polícia, com péssimo atendimento da saúde pública, porque é o Estado matando, e o Estado também mata quando não faz nada para mudar isso”.

    O jurista e presidente do Instituto Luiz Gama, Silvio Almeida, também destaca que é necessário compreender que as mortes de negros não são casos isolados e que partem de uma estrutura de poder. “As instituições têm como modus operandi a discriminação. Na segurança em geral se coloca sempre como um fator desestabilizador alguém que é negro. O negro é o que precisa ser vigiado, sempre alguém que precisa estar em primeiro plano quando se faz políticas de segurança”, explica.

    Além disso, o jurista enfatiza que essas relações de poder também são incorporadas pela própria população negra. “O fato do segurança ser negro reforça ainda mais de que o racismo é produzido por estruturas, que faz com o negro não tenha dimensão da maneira que ele age com seu próprio sofrimento. O agente ser negro não faz com que ele fuja da dinâmica institucional e quando se apaga esse componente, a gente acaba reforçando um discurso racista, justamente para que negros e negras continuem se matando”, pontua.

    “É muito importante que se faça esse ato. A gente tem que começar a lembrar que esse supermercado é uma das empresas de um grupo que é muito maior e que é dono de outras empresas também. Tem que entender como a economia funciona sempre a partir desses lugares, que são lugares de reprodução de fatores discriminatórios”, finaliza Almeida.

    Foto: Ana Paula Souza/Ponte Jornalismo

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