Escola usou ‘liberdade de pensamento’ para justificar promoção de filme que promete ‘resgatar a verdade’; para educadora popular, escola falha ao assumir um lado: ‘o caminho não é proibir, mas fomentar o debate de ambos os lados da história’
Na esteira de polêmicas por conta das comemorações do 31 de março, data do golpe de 1964 que deu início a uma ditadura militar no Brasil, o Centro Educacional Logos, um colégio particular de Ananindeua (PA), está apoiando o lançamento do documentário ‘1964: O Brasil entre armas e livros‘, favorável ao golpe militar, em parceria com o Cinesystem (Shopping Metrópole Ananindeua). A escola se define como cristã e, além da divulgar do evento, é responsável pela venda dos ingressos. O filme foi citado em fevereiro deste ano nas redes sociais do deputado estadual Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), um dos filhos do presidente da república. A exibição será no dia 6/3 e o filme já está disponível desde terça-feira (2/4) no YouTube. O colégio usou a “liberdade de pensamento” e “diversidade de opiniões” para justificar a ação de promoção do filme.
Revolução, milagre econômico e terrorismo comunista são palavras repetidas ao longo do filme, na voz do narrador e dos entrevistados. O documentário conta com personalidades como Olavo de Carvalho (filósofo e escritor), Percival Puggina (escritor e jornalista), Rafael Nogueira (historiador), William Waack (jornalista), Renor Filho (pesquisador), Luiz Felipe Pondé (filósofo e escritor), Bernardo Kuster (jornalista), entre outros. Todos os entrevistados no documentário são majoritariamente homens brancos.
O filme tem produção e lançamento pelo Brasil Paralelo, grupo gaúcho da chamada “nova direita”. O site intitula o longa-metragem como “o maior documentário já produzido no país sobre o período do Regime Militar brasileiro” e promete fazer um mutirão pela verdade sobre o período por meio das falas das “maiores autoridades no assunto para chegar a verdade sobre o tema mais controverso de nossa história”. A direção do documentário é assinada por Filipe Valerim e Lucas Ferrugem. Nas primeiras horas de lançamento, o filme já havia batido 400 mil visualizações.
Para a socióloga e educadora popular Ednéia Gonçalves, a falta de punição dos crimes da ditadura é um dos motivos para que ela ainda seja questionada no Brasil. “Não houve [na história brasileira] um momento em que a gente construiu a ideia do ‘ditadura nunca mais’ de uma forma amplamente coletiva. Não depuramos esse momento, não houve julgamento, não tivemos punições”, afirma a educadora, que também é coordenadora executiva da Ação Educativa, associação civil sem fins lucrativos que atua nos campos da educação, cultura e juventude na perspectiva dos direitos humanos, em entrevista à Ponte.
Ela lembra que essa negação dos fatos da ditadura militar no Brasil não acontece em outros países da América Latina que também tiveram regimes militares, como a Argentina e o Chile, e muito menos do período do nazismo na Alemanha. “Se um deputado exaltar um torturador notório como o [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, ele vira presidente depois [menção ao então deputado Jair Bolsonaro, que na votação do impeachment de Dilma exaltou o torturador], pois não acontece nada. Se por um acaso você pode ter atitudes machistas, racistas, homofóbicas e nada acontece, você cria o chão propício para dizer que pode, que dá. Essas brechas de falta de discussão ampla do tamanho do estrago e da dor que a ditadura causou faz esse assunto voltar”, pontua.
O papel social da escola
A socióloga e educadora popular Ednéia Gonçalves explica que a exibição do filme é só a ponta do iceberg de algo muito maior: a incapacidade para o debate em tempos de extremos. “É muito oportuno colocar um filme que se posiciona dessa forma contra tudo o que a gente definiu, contra tudo que a ciência defendeu, e sobretudo para quem lutou. Uma coisa seria passar esse filme quatro anos atrás, outra coisa é passar esse filme agora, com a cisão que a gente tá vivendo”.
A educadora acredita que passar esse filme sem fomentar o debate, em um momento que o contexto exige discussão, é se posicionar, ao contrário do que defendeu o colégio. “Apoiar um filme que é favorável ao golpe, que alega que as torturas são mentiras, é passar por cima de muitos mortos, é passar por cima de muitas histórias de vida que tão sendo atingidas até hoje. O caminho para gente lidar e analisar o que está acontecendo não é proibir, mas fomentar o debate de ambos os lados da história”, analisa Ednéia.
Atitudes como essa, para Gonçalves, não são novidades. A novidade é a produção de um documentário que promete questionar a história da ditadura militar. “Esse filme claramente defende o indefensável, se posiciona diante de um acontecimento histórico como se fosse uma questão de opinião e a ditadura no Brasil não é uma questão de opinião, é um fato. Um fato com consequências, já estudado e comprovado. Essa possibilidade de pensar que a escola não tem compromisso com o que é comprovado historicamente, com a ciência, com o que a gente entende como as vitórias coletivas a partir de um princípio democrático é que é complicado”, explica.
Sobre a defesa do colégio Logos sobre a “liberdade de pensamento”, Ednéia crava: “Não pode falar, não pode passar o filme? Claro que pode. Agora o que tem por trás de você colocar nesse momento, em que as posições estão totalmente sentidas, um filme com esse conteúdo? É você assumir uma posição, se você não tiver na organização dessa atividade um momento de debate. Se você não tiver o contraditório, a possibilidade de você discutir o que foi esse período com outros posicionamentos, a escola está realmente assumindo uma posição que ela mesma não assume. É totalmente infundado você fazer uma atividade como essa e falar que não tem nada a ver com isso”.
Para a educadora, o que aconteceu com o colégio Logos reflete bem o projeto chamado de Escola sem Partido. “As escolas que assumem esse posicionamento são as escolas que a gente, há muito tempo, tem alertado que são escolas muito fundadas não só no conservadorismo, mas notadamente no fundamentalismo religioso. Essa escola é assumidamente cristã. Desde 2014 estamos discutindo que a ‘Escola sem Partido’ tem uma visão unilateral, extremamente conservadora, extremamente excludente da sociedade e antidemocrática”, explica.
Ednéia lembra que atitudes como essas sempre estiveram presentes. “Essa leitura da história brasileira, totalmente enviesada por esse discurso de ultra direita, ultraconservador, excludente, homofóbico, racista, misógino, isso acontece há muito tempo. Não é porque a gente não está vendo a tentativa de aprovação do ‘Escola sem Partido’ dos meios jurídicos que isso está excluído. Uma das coisas que esse tipo de atitude, e a gente tem visto muito em outras escolas, mostra é o papel da gestão escolar abrindo as portas de tentativa de formação da sociedade, da comunidade escolar, para um tipo de atitude e visão da função social da escola. O que está em disputa é a função social da escola”.
O papel social da escola, para a educadora, deve ser cumprido. “Nesse momento a função social da escola é de resistência aos retrocessos. Quanto mais isso vem à tona, mais fácil é a gente retomar o lugar da discussão que não tinha terminado. Temos que reforçar a função social da escola como um espaço da diversidade, em que a ciência é construída, articulada com cultura, e sobretudo é produtora de conhecimento válido para todas as pessoas. Posso chamar as pessoas para falar que não aconteceu o golpe, mas onde vou esconder todas as pessoas que perderam seus entes queridos, todas as pessoas que foram torturadas? Se faz o que com a experiência da tortura, da violência e das pessoas que estavam do outro lado? A escola não tem argumentos suficientes para bancar assumir um lado, mostrar que apoia o lado que violentou o país inteiro”.
O documentário foi exibido pela rede Cinemark, em quatro capitais, no último domingo (31/3), dia que se completou 55 anos do golpe de 64. A rede de cinemas se arrependeu das exibições, que rolaram nas cidades de Belo Horizonte, Recife, Curitiba e São Paulo, e emitiu, pelo Instagram, uma nota falando em erro de procedimento. “Não autorizamos em nossos complexos divulgação de mídia partidária, tampouco eventos de cunho político. Um erro de procedimento em função do desconhecimento prévio do tema, acabou permitindo o acontecimento. Reforçamos que não apoiamos organizações políticas ou partidos e não tivemos qualquer envolvimento com a produção deste evento”, diz trecho da nota. Os conservadores do Twitter logo se rebelaram e criaram a hashtag #Cinemarx, em alusão a Karl Marx, um dos teóricos do socialismo.
O que pensa a escola
Procurada pela reportagem da Ponte, a escola enviou um comunicado assinado pela direção para explicar as motivações para apoiar o documentário. “O nosso objetivo com este documento é informar e responder dúvidas ou questionamentos. Entendo que não é fácil o momento político que o país está vivenciando, como educadores, nós acreditamos no estímulo à discussão livre. Foi por essa premissa, da liberdade de pensamento, que permitimos espaço ao documentário em nosso canal. Entendemos que nossos alunos precisam se preparar para abordar questões polêmicas e atuais. Em diversas provas e desafios que irão enfrentar em sua jornada em busca de aprendizado rumo ao sucesso profissional”, dizia trecho da carta, que também foi enviada aos pais, às mães e aos responsáveis.
“Foi por essa premissa, da liberdade de pensamento, que permitimos espaço ao filme em nosso canal. Como escola, temos a difícil missão de formar cidadãos éticos. Entendemos que nossos alunos devam se preparar para abordar este tema em provas, com questões polêmicas e atuais. Por esse motivo apoiamos a diversidade de opiniões, com liberdade total para a busca de informações”, continuou o Logos.
Entre as críticas e reclamações, o desrespeito pela história do país e a desistência em matricular os filhos foram dois temas levantado pelos leitores. “Obrigado pelo post. Está printado e mostrarei para familiares e amigos, para que eles também não matriculem seus filhos nessa ‘escola’ que não respeita a História do próprio país. Esse post serviu de alerta”, escreveu um usuário do Facebook. “Eu iria por minha filha nessa escola, mas passo! Obrigada por vocês fazerem eu ter ojeriza ao seu método de ensino”, argumentou outra seguidora.
Apesar de receber críticas, a publicação do colégio também foi apoiada. “Poxa, infelizmente não poderei ir… ficarei aguardando o documentário sobre a Terra Plana, a palestra do Olavo de Carvalho e o seminário anti-vacina”, diz um comentário. “Meus parabéns ao colégio Logos que, ao contrário da maioria, que apenas aceita e concorda com uma narrativa, se coloca ao lado da crítica e promove um contraponto. Legítima e louvável a iniciativa de trazer luz a um momento tão pouco discutido da história recente do Brasil”, comemorou outro seguidor.
A Ponte procurou os idealizadores do documentário por e-mail, mas, até o momento de publicação da reportagem, não teve retorno.
O que diz o documentário
Nos minutos iniciais do filme, um dos fundadores do Brasil Paralelo, que não é identificado, explica o documentário e o projeto. “As nossas produções já levaram informações para 20 milhões de brasileiros, que agora carregam um pouco mais de Brasil dentro de si. O filme que você está prestes a assistir é o resultado do nosso esforço para enfrentar um dos períodos mais conturbados da nossa história. Dezenas de especialistas nos ajudaram a viajar pela bibliografia e documentação, não só do Brasil, mas dos Estados Unidos, Polônia, Berlim e República Checa”.
Quando o documentário começa, de fato, manchetes dos jornais da época do Golpe de 64 entram em cena ao som das vozes dos militares que tomaram o poder. A cena seguinte narra o que foi a Guerra Fria, com um relato do que foi o comunismo na década de 40, intitulado pelo narrador de “o reino do terror vermelho” e outro sobre a “democracia liberal” dos EUA. “O terrorismo revolucionário se torna cotidiano. O crime, o medo e o sangue marcam presença na vida dos brasileiros”, crava a voz do narrador Filipe Valerim sobre os movimentos contrários a ditadura militar alegando que a academia e a imprensa usam esses fatos como uma luta pela democracia erroneamente.
Com ênfase em Dilma Rousseff (ex-Presidente da República, deposta em 2014 depois de um processo de impeachment) e Carlos Marighella (ex-deputado federal assassinado em 1985), o documentário os coloca no papel de “terroristas que lutavam para implantar a ditadura comunista no Brasil”. Sobre as torturas cometidas durante a ditadura militar, o documentário mostra que elas ocorriam dos dois lados, mas que essa polaridade começou depois das ações dos grupos guerrilheiros da esquerda. Para os especialistas presentes no filme, somente em 1968 se iniciou a ditadura militar.
Em outro trecho, os entrevistados defendem que a censura não era tão grave, a repressão nas universidades não era generalizada e as prisões eram pontuais. O jornalista Bernardo Kuster é um dos nomes que defende esse discurso. “É engraçado que as pessoas falam do regime militar, da ditadura, da censura. Primeira coisa, todas as publicações sobre libertação foram feitas, no Brasil, durante o regime militar”, alega o jornalista, que indaga que “que ditadura é essa que tem nos livros? As cartas da prisão do Frei Beto viraram best-sellers no Brasil e no mundo”.
Nos últimos minutos do documentário, porém, os entrevistados mudam o tom e criticam a forma como os militares conduziram o país durante os anos de ditadura, apontando que até hoje não há uma democracia plena no país, uma vez que a sociedade, para eles, foi orientada a viver com a lógica do cabresto. Parte desse fracasso, para os especialistas, está no retorno dos guerrilheiros ao Brasil e a criação de novos partidos.
“Que fim teve a guerra fria? Se fizemos parte dessa guerra, se impedimos uma revolução, foi com a ajuda do quarto poder: o exército. Por 21 anos essas justificativa manteve o poder nas mãos dos militares e foi berço de novas consequências. A revolução transmutou das armas para os livros. Transformou um lado da guerra em mártir, fez da história propaganda, panfletou nas escolas, nas mídias, nas universidades. Formou a nova geração brasileira. Essa geração foi trabalhar nos meios de comunicação, nas editoras e na educação do Brasil. A hegemonia quase apagou o passado, perpetuou uma narrativa. Um lado da guerra foi herói e o outro opressor. O que fizeram os heróis?”, finaliza o narrador, enquanto imagens de manchetes que traziam o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula da Silva e casos de corrupção da era PT eram apresentadas no filme, que termina com uma bandeira do Brasil.