Foto que retrata obra de artista negro é vendida sem autorização do autor

    Um ano após pichar o Pateo do Collegio, no centro de São Paulo, artista João França faz nova intervenção para denunciar exploração do trabalho e da arte dos negros

    Há um ano, o Pateo do Collegio, onde foi levantada a primeira construção da cidade de São Paulo, fundada em 1554, amanheceu pichado com a frase “Olhai por nós”. A reação comum era de surpresa e espanto por um ato que a maior parte das pessoas considerava “vandalismo”, análise bem diferente da feita pelo artista João França, 34 anos, do Coletivo Mia, o autor da intervenção.

    “A crítica é geral, para as pessoas olharem umas às outras. Para quem vestir a carapuça”, explica o pichador, que espalha sua expressão pelas ruas da capital paulista desde os 16 anos. O início se deu pelo picho, arte de rua, de resistência e dos picos dos prédios, e caminhou para o grafite com o passar do tempo e desenvolvimento das ideias e críticas a serem feitas pelo jovem.

    Naquele 10 de abril de 2018, o Pateo não era o alvo do artista. O real foco estava perto, há 250 metros dali: o CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil). A ideia era pichar a fachada do espaço com a frase “Samo is not dead”, em referência a uma exposição do artista americano Jean-Michel Basquiat, morto em 1988.

    Quando vivo, Basquiat também teve seu período como artista das ruas ao lado do amigo Al Diaz. Neste período, assinava as obras com o pseudônimo Samo (abreviação de “same old shit”, traduzido para “mesma merda” no português). Ao ir para o mundo do grafite, Basquiat passou a escrever “Samo is dead”.

    “Escrevi ‘Samo is not dead’. Quando pichava, ele assinava ‘Samo’ e, quando virou artista, passou a usar ‘Samo is dead’. Quiz dizer que o ‘Samo’ não morreu”, explica França. A ação deu certo, mas a seguinte seria ainda maior. Foi quando estavam voltando para casa e passaram em frente ao Pateo do Collegio.

    “Passamos pelo local e vi umas 300 pessoas deitadas dormindo. Aí veio a ideia de fazer uma ação e na hora veio o insight do ‘Olhai por nós'”, conta. A polícia o procurou, interrogou, mas o artista garante que nada sofreu com o caso além da dor de cabeça. “Era eu, uma amiga filmando e mais um mano. Foi foda depois, [os policiais] vieram atrás de mim, a maior pressão. Mas eles me chamavam de Mia, com respeito, sem ofender”, lembra.

    Nas redes sociais, coletivo divulga debate sobre intervenção no Pateo e vende fotos estilizadas da obra, feita por fotógrafos parceiros | Foto: Reprodução/Instagram

    Em 5 de abril deste ano, João França interviu novamente. Entrou na abertura da 15ª edição da SP-Arte, maior evento de arte da América Latina, onde estava exposta uma foto do picho feito por ele no Pateo do Collegio, segundo ele, sem autorização.

    “Descobri dois dias antes, quando o fotógrafo entrou em contato comigo. Fiz algumas exigências: dobrar o valor para venda da foto, que estava em R$ 4 mil, me repassarem metade deste dinheiro e ter meu nome assinado”, explica. “Mas a foto já estava lá, depois de passar pela curadoria. Estava no fim do processo”, conta Mia, como João também é chamado, em referência ao grupo que integra.

    Com as exigências ignoradas, a decisão foi por intervir. Ele entrou no espaço com um spray e escreveu “Negro” na foto, ação registrada e postada em suas redes sociais – no perfil MassiveMia, do Instagram. Ele também espalhou pelo espaço notas de real com a escrita “arte da elite”. A explicação para a palavra escolhida é simples.

    Notas espalhadas pela SP-Arte | Foto: Arquivo pessoal

    “Negro pela exploração do povo e do trabalho do negro. Eu sou de periferia, jamais teria uma obra exposta na SP-Arte. Quem expôs foi um fotógrafo estudante da Escola Belas Artes, branco, não o autor da intervenção, um homem negro”, dispara João, abordado por um homem que, segundo ele, parecia ser segurança do local. Ele tirou uma foto do artista e nada mais aconteceu.

    João França lista o Borba Gato e o Monumento às Bandeiras como estátuas em seu currículo, ou seja, com intervenções feitas. As duas foram realizadas em 2016. “O que me motiva a fazer arte é a reflexão, fazer com que as pessoas reflitam”, diz. Para ele, escolher monumentos amplia o impacto de sua arte. “Já fiz todos que eu tinha vontade e estava no propósito”, garante.

    Ele e seus parceiros foram multados por estes pichos – ele não detalhou valores. De acordo com o art. 65 da lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, o ato de pichar uma edificação ou monumento é crime com pena de três meses a um ano, além do pagamento de multa. No inciso um do artigo, a pena mínima sobe para seis meses em caso de obras tombadas pelo valor artístico, histórico ou arqueológico.

    Já o inciso 2 trata de explicar que o grafite não contraria a lei. “Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional”, diz o texto.

    A Ponte enviou questionamentos e pedido de posicionamento para a assessoria de imprensa da SP-Arte e aguarda uma resposta.

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