Rachel tem medo de água

    Moradora do bairro Jardim Peri, extremo norte de São Paulo, Rachel sustenta três filhos em um barraco que inunda; a reforma da sua casa está avaliada em R$ 20 mil, mas sua renda fixa é de apenas 51 reais

    ‘Pai só sabe fazer. Quem foi pai e mãe, até hoje, foi eu’, diz Rachel sobre os 6 filhos que criou sozinha | Foto: Everton Pires Luz/Ponte Jornalismo

    Rachel tem 46 anos e medo de água. Dos céus, a água que cai é desespero. Leva o pouco que sobra do barraco no Jardim Peri, localizado no extremo norte de São Paulo. Na torneira, quando o aguaceiro deveria vir, não vem. Em um país que mata e maltrata mulheres, Rachel – não por escolha – sente medo da água. Sente medo do simbolismo da vida. Sente medo porque a vida lhe mostrou o pior. E a água, enquanto vida, marca, destrói e arruína Rachel.

    Rachel Baptista Dourado não sabe se no sangue há nem Baptista e nem Dourado. Quando nasceu foi rejeitada por ser retrato de um Brasil que descrimina mulheres. Por ser filha de mãe solo se tornou um sobrenome que nada diz. Aos 7 meses, uma mulher chamada Teresa quis o bebê indesejado para si. Da boca dos outros, ainda menina, descobriu que a expressão mãe verdadeira iria inquietar sua vida. Teresa – a quem ela sempre chamou de mãe – preferiu esconder a revelar a origem de uma menina que não sabia de onde vinha. Com 46 anos, Rachel deseja a descoberta. “A única coisa é que eu queria conhecer minha família verdadeira”.

    Para proteger o equipamento da chuva, Rachel colocou uma placa de ferro na porta | Foto: Everton Pires Luz/Ponte Jornalismo

    Teresa, além de furtar um sobrenome, também furtou o íntimo de Rachel. Sempre que a menina – com menos de 10 anos – voltava para casa, passava por um pequeno exame cirúrgico sem explicação. A mãe – de criação, como Rachel gosta de dizer – abria suas partes íntimas. “Não sei o que passava na cabeça dela”.

    Com uma década de vida, o sexo de Rachel não seria apenas examinado, se tornaria alvo de violência. Aos 10 anos, seu corpo não seria mais seu. Bastava chegar da escola para o padrasto a estuprar. Todos os dias. Guardou segredo enquanto pôde. Por um momento acreditou que a palavra mãe – mesmo que de criação – significava, no mínimo, compaixão. Para Teresa, o estupro de nada valia e Rachel preferiu fugir a comprovar se as ameaças de morte do padrasto eram reais.

    Mesmo quando não chove, o barraco de Rachel fica úmido e com poças pelo chão | Foto: Everton Pires Luz/Ponte Jornalismo

    Aos 10 anos, ela buscou abrigo ao ceder sua força física. Passou a trabalhar como empregada doméstica para ter onde morar. Do contrário, iria dormia ao relento. Foi assim, no ano da década que mais parecia durar uma eternidade, que Rachel foi parar na FEBEM (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor), atual Fundação Casa.

    No bairro Chora Menino, também na zona norte de São Paulo, ela encontrou um namorado. Teresa, que não aceitava a fuga da menina denunciou a própria filha. “Daí como ele era de maior e eu era de menor eu fui para a FEBEM”. Lá dentro viu, novamente, a morte de perto. “As meninas queriam me matar lá, queria que eu virasse sapatona. Aí o dia que as meninas tava armando pra poder querer mexer comigo, me fura, alguma coisa, eu tentei fugir”. Entre 13 e 14 anos, ela não se recorda bem, conseguiu correr a caminho da liberdade. Voltou a trocar casa e comida por trabalho. Dali para frente seria a maternidade, as relações amorosas, a condição social – e a água – que iriam violentar Rachel.

    Há quatro anos, Rachel e os filhos convivem com medo da água, que toda chuva invade o barraco | Foto: Everton Pires Luz/Ponte Jornalismo

    Aos 19 anos pariu a primeira filha, Pâmela. Mas antes mesmo do médico cortar o cordão umbilical a barriga lhe causou tormento. Com 8 meses de gestação descobriu que Raul, o pai da criança, tinha dupla jornada de vida. Enquanto engravidava Rachel, o homem também estava noivo de outra mulher.

    No Mandaqui, outro bairro da zona norte da capital, Rachel se encontrou com a noiva do homem que deveria ser somente o pai de sua filha. “Aí eu peguei e falei: ‘Moça, por favor. Eu queria falar com a senhora.’ Daí ela falou assim: ‘Mas o que você quer?’ Eu falei: ‘Não, por favor da para a senhora esperar que eu quero conversar com a senhora?’ Aí eu falei: ‘O Raul é o que da senhora? ’Ela falou: ‘Meu noivo’”.

    Rachel não consegue arrumar emprego pela falta de estudo, pois cursou somente o primário | Foto: Everton Pires Luz/Ponte Jornalismo

    O homem que viveu ofuscado pela mentira não aceitou a verdade. Transformou a palavra dita em violência e agrediu a mulher que carregava no útero sua filha. Rachel seguiu e confiou na Justiça. Denunciou. Mas a cor de sua pele e a falta de estudos, transformaram a busca por uma medida protetiva em uma nova violência. “Como essa noiva dele tinha estudo, era formada, abafou o caso. E quem ficou no prejuízo foi eu. Porque daí ele passava por mim e nunca deu assistência”.

    Pâmela nasceu quando Rachel tinha 19 anos. Ao longo dos anos ela deu à luz mais cinco vezes. Em mais uma experiência arruinada, Rachel se viu mãe e pai de seis crianças. Diego, Milena, Miriam, Matheus e Tamires são frutos de uma relação que durou cinco anos no papel e doze anos “amigada”.

    Poças de água ao lado e embaixo das camas de Matheus, Milena e Diego | Foto: Everton Pires Luz/Ponte Jornalismo

    “Pai só sabe fazer. Quem foi pai e mãe, até hoje, foi eu”. Dessa vez, Rachel não mediu esforços para mandar o marido correr. Mas deixou – ou pelo menos tentou – bem claro que filho é uma responsabilidade eterna. Quando pediu ajuda para a reforma do barraco, escutou: “O barraco não é meu”. E, desde então, há quatro anos, quando o céu escurece e avisa a chegada da chuva não há o que fazer. “A gente fica só no meio da goteira. Se for um pé d’água, pior. A gente vai colocando as tábuas, as coisas, para ver se da uma segurada”.

    Embaixo do barraco que não segura água, Rachel sustenta Diego, Milena e Matheus. Os filhos de 20, 16 e 14 anos, respectivamente, disputam o pouco espaço com dois cachorros. Rachel, que tem experiência na profissão de faxineira há quase 40 anos não consegue trabalho. Para lavar, passar e limpar exigem a leitura e a escrita de uma mulher que cursou somente o primário. “Então, eu gostava muito de mexer com casa e hoje você não vê mais. Nem por indicação você consegue mais arrumar serviço. E quando elas [as patroas] não quer pagar, elas quer pagar mixaria. Agora ta difícil, porque eles quer estudo e eu não tenho estudo”.

    Local de maior entrada d’água da casa, próximo ao tanque de lavar roupas | Foto: Everton Pires Luz/Ponte Jornalismo

    Em tempos escassos de faxina, Rachel alimenta as quatro bocas da casa com o auxílio bolsa-escola que o Matheus recebe – o único matriculado no colégio. O valor, distribuído mensalmente pelo Governo, é de 51 reais. De acordo com Márcia Vitoriano, dona da ONG Nova Mulher, para reformar o barraco que mais pinga do que protege Rachel precisa de 20 mil reais.

    A Associação Sem Fins Lucrativos, localizada na Vila Nova Cachoeirinha, mais um dos bairros da zona norte da capital paulista, se responsabilizou pelas arrecadações e o suporte necessário para a Rachel. Já que ela não fazia “a mínima ideia” de quanto precisava levantar para a reforma da casa.

    Rachel faz parte do censo dos brasileiros que são estuprados do nascer ao morrer. Seja por violência sexual, seja pela violência de uma vida desumana. Hoje, aos 46 anos, ela continua sendo estuprada todos os dias. Não mais por um homem. E sim, por uma nação. Por medo da vida. Por medo d’água.

    A reportagem foi atualizada no dia 13/5 às 11h30 para correção de uma informação errada. O valor da reforma é de R$ 20 mil, não R$ 200 mil.

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