Em ato ecumênico que lembrou morte de mulher no centro de São Paulo, durante conflito com guardas civis, defensores de direitos humanos falaram sobre importância da união para resistir à violência
A cerca de 20 metros do começo do “fluxo”, local de compra e venda de drogas na região da Luz, no centro de São Paulo, um grupo de pessoas reza o “Pai-Nosso”, considerada pelos cristão a oração universal. Na sequência, alguém grita que é bom lembrar da “nossa mãe do céu” e puxa uma “Ave-Maria”. Debaixo de garoa, movimentos sociais, defensores de direitos humanos e representantes religiosos se reuniram na Praça Julio Prestes para realizar um ato ecumênico por causa do 7 dias da morte de Adélia Batista Xavier, 31 anos, atingida na cabeça durante uma operação da PM (Polícia Militar) e GCM (Guarda Civil Metropolitana), na quinta-feira passada (9/5). Além de um momento de oração e reflexão, o ato ficou marcado pela denúncia do genocídio da população pobre.
“Esse povo todo desumanizado pelo olhar de outras pessoas, descartado, entrou agora de uma vez por todas na linha de tiro, a partir desse decreto de porte de armas, e desse excludente de ilicitude do pacote anticrime. Eu prevejo o pior, prevejo que vai ser um por dia a ser morto daqui pra frente. Aqui eles estão em uma espaço público, perto de um prédio onde funciona a Sala São Paulo, frequentado pela elite, qual a ideia: elimina, mata. As pessoas estão se sentindo no direito de matar. A gente teve também a morte de outra trans confirmada hoje, na Barra Funda”, afirma padre Julio Lancellotti antes do início das orações.
Para ele, há ligação total entre a morte de Adélia e o assassinato do catador de recicláveis Sebastião Lopes dos Santos, 40 anos, em Santo André, na Grande São Paulo, no fim de semana. “Os dois foram executados. Nenhum dos dois estava, como eles [agentes de segurança] gostam de falar, em atitude suspeita que justificasse alguma ação. Os dois foram executados e isso entra na linha desse excludente de ilicitude e quem será exterminada é essa população mesmo”, pontua. “Lá na Mooca tem sido muito comum durante a abordagem dos moradores de rua eles falarem ‘agora mudou. Agora é tiro na cabeça'”, conta Lancellotti.
O presidente do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), Dimitri Sales, destaca que a ação ocorrida na semana passada foi irresponsável. “A GCM atirou a esmo e poderia ter atingido qualquer pessoa. Acho que temos que refletir qual a polícia que temos, qual a guarda civil que temos e qual a queremos. E também cobrar do poder público a assistência e o cuidado que é preciso ser tomado aqui na região da cracolândia”, pontuou Sales. Ele contou que o Condepe tem feito esforços com a Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, a Defensoria Pública e o Ministério Público para encontrar caminhos para discutir questões da violência policial com enfoque à população em situação de rua.
Ex-moradora da cracolândia, Janaina hoje é missionária da Assembleia de Deus e disse que estava no ato apenas para dizer uma mensagem de amor. “Eu mesma saí daí [da cracolândia] com a permissão de Deus. A palavra que eu quero deixar é que a gente precisa ter humildade, amor e esperança e a fé que as coisas podem ser mudadas, mas para isso é preciso união”, disse, emocionada.
Alderon Costa, ex-ouvidor da Defensoria Pública de São Paulo, fala da importância de dar nome aos bois e responsabilizar o gestor público, porque, em última análise, é quem dá a ordem e chancela essa política de extermínio. “A pessoa que atira tem a responsabilidade, mas a sociedade como um todo, os gestores públicos são os mais responsáveis por essas mortes. A gente precisa também responsabilizar essa elite que lava as mãos: ‘ah, não fui eu, foi o guarda’. Mas que aplaude. São os mandantes. Isso precisa ser colocado”, afirmou.
Lancellotti fez a leitura de um trecho do Evangelho de Mateus em que Jesus diz aos discípulos: “Eu tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, fui peregrino e me acolhestes, estive nu e me vestistes, estava preso e fostes me visitar”. Em seguida, os seguidores de Cristo não entendem, afinal, quando é que fizeram essas coisas a ele, que responde: “todas as vezes que fizestes uma dessas coisas a meus irmãos menores, é a mim que fizestes”. Ao concluir, Lancellotti fez uma fala contundente contra a violência de Estado. “Precisamos todos juntos falar, gritar que não é lícito matar. Não matarás”. E pediu que todos repetissem em alto e bom som. “A execução aqui foi violenta e covarde. E agora querem desacreditar a vítima que não pode mais se defender”, criticou.
Darcy da Silva Costa, do Movimento População de Rua, provoca os presentes a pensar sobre de onde vem toda a miséria e a quem interessa que ela continue. “De onde essa negligência? Não agrada ninguém ver o ser humano nessa situação. Como podemos trazer de fato uma ação efetiva? Temos muito o que fazer e o que lutar, porque o que está colocado aí vai piorar a situação. A gente precisa buscar melhorar essa situação juntos. Isso não é vida”, pontuou.
Alderon, ao final do ato, pediu que o grupo se dividisse em grupos melhores e pediu que cada um firmasse um compromisso coletivo e falasse em voz alta. Os dois compromissos que os participantes firmaram foram: “Estaremos sempre juntos” e “Vamos escutar mais as pessoas”.
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